"Contribuir com o fortalecimento das Organizações Sociais na perspectiva da defesa dos direitos e da transformação social, construindo parcerias e dando visibilidade a práticas sociais inovadoras".

Terra, Trabalho e Dinheiro: Qual é o Sentido da Des (regulação) Ora em Curso.

Guilherme C. Delgado

I – Introdução

Desde o golpe parlamentar do “impeachment”, acelerou-se um processo, que não é novo, mas que adquiriu velocidade e profundidade, sem precedentes, em três esferas de relações sociais fortemente reguladas pelo Constituição de 1988:

  1. as relações fundiárias, legitimadas pelos conceitos de terra Bem social e Ambiental (Art. 186); Terra Indígena (Art. 231) e Quilombola (ADCT – Art. 68)) e Parques e Reservas Ambientais continuas (Art. 225);
  2. relações de Trabalho e proteção social, (Art. 8 e 193 a 195), sujeitas às salvaguardas dos princípios da CLT (Art. 8º) e da Seguridade Social (“Ordem Social” – Art. 193 a 232);
  3. relações financeiras, sacralizadas pela PEC 55/2016 (EC. 95/2016) e legislação precedente, na condição de ilimitadas e irresponsáveis do ponto de vista de despesa pública, como também insusceptíveis, na prática, de sanção penal (MP. 784/2017).

A quantidade de eventos legislativos e administrativos regulando e desregulando esses três “mercados”, que vêm ocorrendo nesse período do Governo Temer, é inédita na história do Parlamento brasileiro, comparável talvez a fúria de produção legislativa dos dois primeiros anos do governo Castelo Branco.

Mas é importante perquirir o sentido de conjunto dessa verdadeira operação desmonte do Estado Democrático, a semelhança do ocorrido em 1964, com as diferenças relevantes da situação atual, quando ainda há uma dependência formal em relação à Constituição de 1988, mas uma aversão real aos seus princípios, diretrizes e instrumentos de salvaguarda dos direitos sociais, principalmente.  Em seu lugar, erige-se a tese da absoluta dominância dos mercados autorregulados, tendo no seu ápice o mercado financeiro – ilimitado, irresponsável e inimputável, sob proteção e gestão de um Banco Central idem. Vamos iniciar pelo tema financeiro, que é na verdade o núcleo central desse processo.

2 – Dinheiro

Duas peças legais editadas em 2016 e 2017 conferem ao capital operante no setor financeiro, principalmente nas operações de Dívida Pública, um “Status” acima de qualquer outro setor beneficiário da esfera pública.  A PEC do Teto por 20 anos do gasto primário, já vigente, elege a despesa financeira pública como entidade, que já gozando da condição de irresponsabilidade fiscal pela vigente Lei de Responsabilidade Fiscal, adquire agora a condição de credora compulsória do superávit-primário do Orçamento Fiscal e da Seguridade, podendo ainda crescer ilimitadamente por período de 20 anos – regra consagrada pela EC. 95/2016, antiga PEC 55-2016.

Por sua vez, o tratamento de sacrifício radical imposto pelo teto orçamentário primário, que a estrutura fiscal-financeira vigente mantém, não se aplica aos haveres públicos da União, inscritos ou não na Divida Ativa.  Aqui há um convite à evasão fiscal interna e à migração de capital aos paraísos fiscais, operações toleradas e até mesmo sancionadas pelos frequentes programas de perdão, anistia, recomposição de débitos para com a União; sejam internos (REFIS), sejam externos – (repatriação de dinheiro dos paraísos fiscais). Somente no ano fiscal de 2017, a Receita Federal estima em 78 bilhões de reais o conjunto de perdões tributários, inscritos na Dívida Ativa para com a União, em vários programas nada austeros, ao estilo anistia fiscal (ver O Estado de São Paulo – 20-08-2017 – p. 1)

Não bastasse essa completa inversão ético-política da EC. 95/2016, complementada pelos programas de evasão fiscal e cambial tolerados, o sistema blinda-se em junho de 2017 com a MP 784/2017, no sentido de evadir-se à sanção penal contra delitos financeiros, pela regra do segredo nos “acordos de compromisso” e “acordos de leniência”, que tanto o Banco Central, com a Comissão de Valores Mobiliários são autorizados a praticar.  Tudo fica resolvido mediante multas pecuniárias, independente da confissão do ilícito e de sua publicização.

 

3 – Trabalho

Enquanto o arsenal para o capital financeiro é de Estado Máximo Protetor, para as relações de trabalho e proteção social, a legislação já editada ou em vias de sê-lo, investe na tese do “mínimo-minimorum”.

Os orçamentos públicos das áreas sociais, de Infraestrutura, Segurança Pública, Defesa, etc. estão todos escancaradamente cortados, especialmente o Orçamento da Seguridade Social, que praticamente fica cancelado pelo EC. 95/2016, por 20 anos.  Por sua vez, como a despesa previdenciária deste Orçamento depende de mudança constitucional específica, a chamada PEC da Previdência (244/2016) tramita para complementar a regressão nos direitos previdenciários, aí se destacado à virtual extinção da Previdência Rural (no formato da Constituição de 1988), e alongamento excessivo dos tempos de contribuição (25 anos), como critério taxativo à concessão de aposentadoria por idade.

Finalmente as mudanças já havidas na legislação trabalhista ordinária – Lei da Terceirização irrestrita (Lei 13.429/2017) e Lei da mudança das regras da CLT (Lei 13.467 de junho de 2017), acentuam a desigualdade na relação capital-trabalho, favorecem ainda mais a rotatividade no mercado de trabalho e à fuga para relações informais, ampliando a dureza de desproteção previdenciária, segundo a regra do tempo de contribuição de no mínimo de 25 anos.

4 – Terra

O processo desconstrutivo de direitos sociais agrários, é importante destacar, é mais antigo, relativamente ao governo Temer. A autodenominada economia do agronegócio reconstituiu-se de fato no segundo governo FHC, dominando desde então todos os governos; e persegue com afinco a ‘mercadorização’ de toda a terra, invadindo os espaços territoriais, que por direito constitucional têm conceituação nada coincidente com “terra mercadoria”.

Mas há também na conjuntura o aprofundamento regressivo do direito agrário, de maneira que se pode também caracterizá-lo, pela intensidade, como sem precedentes. A MP 759/ 2017 (já transformada na Lei n. 13.465/ 2017), é o carro chefe desse processo. São dois focos principais: 1- o ataque aos territórios dos assentamentos agrários em todo o Brasil, para efeito de colocação no mercado de terras desses espaços, para o que se concede a titularidade individual à base de l0% do valor de venda da terra; 2- na Amazônia Legal reeditam-se regras de legislação permissivas à grilagem, editadas ainda em 2008, legalizando grande áreas públicas invadidas, mediante idênticos expedientes de “venda” a preços irrisórios e sem conexão com a reforma agrária.

Há também muitas providências de caráter legislativo e administrativo visando à desestruturação da FUNAI e do INCRA (ex.-CPI FUNAI/INCRA), extinção do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário) e sucateamento orçamentário dessas duas agências ligadas à questão fundiária (INCRA) e indígena (FUNAI), cujas terras por elas geridas são avidamente cobiçadas pelos grileiros da linha auxiliar do agronegócio.

No plano judiciário, os arautos da economia do agronegócio lutam no STF para conseguir estabelecer uma tese – o chamado ‘marco temporal” – da data da promulgação da Constituição de 1988, como referência à posse ou ocupação efetiva ‘provadas’ dos territórios indígenas naquela data, como único critério de direito indígena. Tudo o mais seria dispensável, incluindo todo o acervo de laudos antropológicos, que de direito tem servido à comprovação dos territórios ancestrais do ‘habitat étnico.

Além da regressão legal, assiste-se no espaço rural notável recrudescimento da violência contra populações indígenas, camponesas e quilombola, objeto de outras seções desse ‘Relatório’, na esteira da regressão geral de direitos que vem caracterizando o período do gov. Temer.

5 – Conclusão

O arranjo legislativo, administrativo e de decisões judiciárias (mas principalmente de sua omissão) configuram no período do governo Temer um golpe profundo nas relações sociais salvaguardadas pela Constituição Federal –  terra, trabalho e dinheiro (Finanças Públicas), erigindo-se em seu lugar uma espécie de “estado novo da segurança financeira’.

Isto tudo é realizado à margem da soberania popular, que em nenhum momento foi ouvida, neste processo.

Do ponto de vista dos direitos humanos não se pode ter dúvidas sobre suas consequências. Desigualdade social retornando e se legalizando no mundo do trabalho; violência crescente no espaço agrário, especialmente contra as populações indígenas; assentados e pequenos posseiros.

E no polo oposto – absoluta proteção aos ricos detentores da riqueza financeira e fundiária.  Ademais, acena-se aqui com e internacionalização do mercado de terras, em claro atentado à soberania nacional, precedido por outro tão grave – o crescente sucateamento orçamentário da Defesa Nacional.

Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir não pode se iludir – o processo em curso é de barbárie social-nacional, conduzido pelas mãos visíveis do governo Temer, mas manipulado sub-repticiamente pelos mercados financeiros.