Criminalização da roça de coivara motivou êxodo rural em comunidades; obra vem para combater este cenário
Adrielly Marcelino*
Logo no começo do livro “Roça é Vida“, um poema sintetiza a importância da obra e incita uma a reflexão que pode ajudar a explicar — muito melhor que qualquer economista do governo — o porquê do preço do arroz ter subido tanto nos últimos meses:
Quilombola sempre foi soldadoque cedo ao trabalho sai
cuida pelo seu roçado
não pode descuidar
tudo tem tempo marcado
na hora de plantar.Se não fossem esses abnegados
o povo da cidade não iria se alimentar
se ele planta atrasado
a vaca vai pro brejo
porque arroz e feijão
ainda não vi fabricar.
Leonila Priscila da Costa Pontes
O livro “Roça é Vida”é fruto de um trabalho coletivo que juntou dezenove associações quilombolas do Vale do Ribeira, região localizada entre os estados de São Paulo e Paraná.
A obra narra a história da personagem Fartura, neta da Mestra Tradição, que com seus irmãos foi trazida da África para terras brasileiras, onde fundaram comunidades quilombolas que resistem até hoje.
O enredo da história de Fartura se passa na roça de coivara, prática que resultou das relações de conhecimentos quilombolas, integrados à fauna e flora da Mata Atlântica para a produção de alimentos saudáveis.
Quem afirma este cenário é Luiz Marcos de França Dias, que assim como as outras pessoas do Quilombo de São Pedro, se apresenta falando orgulhosamente seu nome completo.
Luiz é tataraneto de Bernardo Furquim e Rosa Machado, fundadores do Quilombo de São Pedro. Ele é professor de literatura da rede estadual de São Paulo e também é foi um dos autores da obra “Roça é Vida”.
Juntando ancestralidade, legislação ambiental e condições sociais na comunidades, ele lembra que, na trama, Tradição teve um filho, que se chama Êxodo, repercutindo o fato das pessoas que precisaram migrar para as cidades diante da proibição da roça de coivara.
O processo da roça de coivara respeita o meio ambiente e afirma a tradição cultural dos povos quilombolas. De acordo com Luiz, as próprias condições do local comprovam que este conhecimento é totalmente sustentável.
“Existe uma gama de conhecimentos que envolvem os povos e comunidades e permitem que tenhamos hoje no Vale do Ribeira o maior corredor de vegetação nativa de Mata Atlântica do país”, ressalta.
A própria realização de queimadas na roça de coivara não compromete a biodiversidade, uma vez que a gestão e controle do processo proporciona matéria orgânica nutritiva para o solo florestal e alimento para os animais da floresta.
“Antes eu faço um asseiro ao redor para que esse fogo seja controlado e não adentre a mata atlântica. Depois eu ateio fogo. O que acontece? Esse fogo não vai atingir as camadas superficiais do solo. Estudos científicos comprovam isso e também aquilo que nossos mais velhos já acreditavam e até hoje acreditam”, explica.
As famílias do Vale do Ribeira praticam a técnica de rotação de culturas. Ou seja, temos uma sequência de plantio, colheita e descanso do solo entre diferentes culturas, para aproveitar os microorganismos que cada espécie proporciona ao solo.
Produção coletiva
A proposta do livro Roça é Vida é preservar a cultura e os conhecimentos milenares das comunidades quilombolas do Brasil. Para tanto, a metodologia da ilustração valorizou processos de integração e coletividade.
“O processo de ilustração do livro tem uma dimensão um pouco maior do que uma simples ilustração. A gente conta com artistas pesquisadores que vieram até o território e observaram. Em uma das produções tem tinta que foi utilizada como base para a tinta a terra da própria comunidade daqui. A ilustração foi feita em conjunto nesse processo coletivo”.
O livro Roça é Vida” é de autoria de Viviane Marinho Luiz, Laudessandro Marinho da Silva, Márcia Cristina Américo e Luiz Marcos de França Dias. A ilustração é de Amanda Nainá dos Santos (conhecida como Nainá) e Vanderlei Ribeiro (conhecido como Deco). A publicação contou com o apoio do Instituto Socioambiental (ISA).
Vale destacar também que o sistema tradicional agrícola das associações presentes na obra é reconhecido como patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 2018.
*Adriellly Marcelino com supervisão de Daniel Lamir
Edição: Daniel Lamir
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