"Contribuir com o fortalecimento das Organizações Sociais na perspectiva da defesa dos direitos e da transformação social, construindo parcerias e dando visibilidade a práticas sociais inovadoras".

Artigo: Racismo impedindo o acesso à terra, ao teto e ao trabalho: As questões raciais e de identidade afrodescendente

“O fim da escravidão não garantiu, efetivamente, a inserção da população negra na vida econômica, política e social”.

 Atos antirracistas no Brasil, o8 de de jun. de 2020 em Curitiba (PR) | Foto: Eduardo Manfré/Mídia Ninja

 

Por João Carlos Pio de Souza [1] e Nuno Coelho de Alcantara [2] | 6ª Semana Social Brasileira

O Brasil é a primeira nação fora do continente africano em contingente de população negra, sendo superado apenas pela Nigéria. Essa característica do povo brasileiro tem a ver com o processo histórico instalado a partir da invasão portuguesa, que, para produzir e gerar riquezas estabeleceu o trabalho escravo como uma condição para o seu projeto de conquista e dominação. O Brasil recebeu o maior número de africanos escravizados, pertencentes a diferentes povos e culturas africanas e trazidos à força para cá.

Despersonalizados pela ruptura violenta e traumática das relações sociais nas quais foram submetidos ao longo de mais de trezentos anos, esses homens e mulheres tiveram que forjar uma nova identidade. (CARDOSO, 1982)

Em razão deste processo, “a escravidão e seus efeitos passam a ser o ponto central para entender o Brasil” (SOUZA, 2017), pois marcam profundamente a história brasileira, de forma que ainda repercutem na sociedade dada a condição de desvantagem que ainda impacta a vida da população negra no campo e nas cidades.

Junto com a escravidão, o racismo é outro elemento central para entender a condição de mulheres e homens negros no Brasil contemporâneo, pois constituem formas estruturais e estruturantes da sociedade e das relações raciais.

Abandonados à própria sorte no pós-abolição e em uma sociedade recém-republicana, coube aos próprios negros organizarem novas formas de lutas para a proteção da sua vida e seus direitos.

O fim da escravidão não garantiu, efetivamente, a inserção da população negra na vida econômica, política e social. Abandonados à própria sorte no pós-abolição e em uma sociedade recém-republicana, coube aos próprios negros organizarem novas formas de lutas para a proteção da sua vida e seus direitos. Sua luta e seu protagonismo contra o cativeiro tomaram forma por meio de ações individuais ou coletivas: ataques a proprietários e feitores, fugas, formação de quilombos, incêndios de fazendas, conspirações, rebeliões e insurreições. Destacam-se também os interesses do Império Britânico, vanguardistas do capitalismo mundial, que preferia trabalhadores assalariados, consumidores de seus produtos manufaturados.

O fim da escravidão brasileira foi resultado de um processo gerado no interior do próprio sistema, acelerado ao longo do século XIX, em especial a partir da sua segunda metade. Não foi um processo gradual e linear, mas deu-se com avanços e recuos, adequações, conflitos, lutas e acomodações entre os grupos sociais em disputa que desembocaram na assinatura da Lei Áurea. Vale destacar que na ocasião da assinatura do Decreto Imperial 3.353 de 13 de maio de 1888, que tornava o trabalho escravo definitivamente ilegal, apenas 5% da população negra encontrava-se na condição de escravizada.

Para entender a situação do povo negro no Brasil precisamos considerar os acontecimentos que, efetivamente, produziram ao longo da história o processo de exclusão e subalternização. O acesso à terra constitui um eixo importante para pensarmos sobre este processo. Podemos começar tratando da Lei de terra nº 601 de 1850[3], publicada logo após a Lei Euzébio de Queirós, que estabeleceu que a terra não poderia ser mais apropriada através do trabalho, mas apenas por compra do Estado. Além de impedir que obtivessem posse de terras por meio do trabalho, essa lei previa subsídios do governo à vinda de colonos do exterior para serem contratados no país, desvalorizando ainda mais o trabalho dos negros e negras. Estabelecendo a renda para a aquisição de terras, essa lei impossibilitou o acesso de negros e negras, bem como não regularizou as terras já de posse de grupos negros. Ao contrário, favorece a apropriação das terras pelas elites agrárias.

A lei unia, portanto, num mesmo projeto duas questões: a imigração e a regulamentação fundiária, e operava a transição entre uma forma de propriedade na qual os sesmeiros eram apenas concessionários para uma outra forma, burguesa e contratual, vinculada à consolidação do Estado nacional. Convém observar que, na lei, os africanos e seus descendentes foram excluídos da categoria de brasileiros e classificados apenas como libertos. Se a escravidão não aparece no texto, à população escravizada não caberiam direitos à terra, ao emprego ou outra forma de subsistência, como eram explicitamente determinados para o imigrante. (ÁGUAS, 2012)

Com a decadência do regime escravagista, as elites instaladas no poder foram estabelecendo estratégias legais para impedir que a propriedade passasse para as mãos dos negros.

Com a decadência do regime escravagista, as elites instaladas no poder foram estabelecendo estratégias legais para impedir que a propriedade passasse para as mãos dos negros. No processo estabelecido a partir da Lei de Terras e todas as medidas subsequentes, não restam dúvidas de que a população negra foi “invisibilizada”.

A abolição legal da escravatura não foi seguida do parcelamento da propriedade com entrega de terras aos ex-escravizados nem foram providenciadas escolas de artífices e de educação. Substituiu-se apenas o escravo pelo mal assalariado, dentro do mesmo sistema cultural escravagista. “Deixaram-no estiolar nas senzalas, de onde ausentara o interesse pela sua antiga mercadoria, pelo gado humano de outrora. Executada assim, a abolição era uma agonia atroz. Dar liberdade ao negro, desinteressando-se, como se desinteressando absolutamente de sua sorte, não vinha a ser mais que alforriar os senhores”, como bem disse Rui Barbosa (1999).

O Brasil republicano não garantiu, efetivamente, a inserção da população negra na estrutura social, econômica e de poder. As condições de desigualdades que afetam a vida da população negra e a violência sobre os corpos de mulheres e jovens negros devem ser entendidas em razão da permanência do racismo estrutural e estruturante das relações na sociedade, que, como estrutura de poder, determina quem deve viver ou morrer, além de definir quais grupos e comunidades devem receber os investimentos destinados às políticas públicas para a superação das desigualdades raciais e sociais. A construção da República baseada na exclusão social fez com que os negros continuassem “cidadãos de segunda classe”, situação que se mantem até hoje.

Assim, embora as estatísticas demográficas do IBGE mostrem que a população negra (pretos e pardos) compõe mais da metade da população do país, economistas, sociólogos, jornalistas, políticos, professores, enfim, os intelectuais considerados como classe ou grupo, e, em especial, como uma elite artística, social e política branca não se preocuparam com a desigualdade brutal entre negros e brancos no Brasil.

A superação da desigualdade racial que afeta a vida das populações negras no Brasil precisa ser enfrentada efetivamente com políticas públicas, como forma de reparar as desvantagens acumuladas pelo povo negro brasileiro.

Historicamente, as políticas públicas brasileiras têm-se caracterizado por adotar uma perspectiva social com medidas redistributivas ou assistenciais contra a pobreza baseadas em concepções de igualdade, sejam elas formuladas por políticos de esquerda ou direita (Munanga, 1996). Com a redemocratização do país, o movimento negro começou a exigir uma postura mais ativa do Poder Público diante das questões de raça, gênero, etnia e no tocante à adoção de medidas específicas para sua solução, como as ações afirmativas.

A luta antirracista no mundo, hoje, se dá contra a crescente concentração de renda.  Dados da Oxfam[4] mostram que “os 2.153 bilionários do mundo têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas (60% da população mundial)”. O desemprego e o subemprego aumentam no mundo pela falta de políticas públicas efetivas que atendam a população mais pobre e pela consciência capitalista que acumula riquezas e continua a “escravizar” os trabalhadores negros. Por isso, podemos dizer que o racismo é uma das ideologias que sustentam a lógica de acumulação de riquezas.

O índice de desemprego no Brasil é quase 12%, o que corresponde a cerca de 13 milhões de desempregadas e desempregados, em sua maioria negras e negros.

No Brasil, o governo atualmente impõe a pauta ultraliberal, o que fez aumentar o desemprego e o subemprego. A maioria da juventude negra trabalha em empregos precários. Isto se dá pelo aumento da participação do capital rentista na economia como consequência da política econômica atual. O índice de desemprego no Brasil é quase 12%, o que corresponde a cerca de 13 milhões de desempregadas e desempregados, em sua maioria negras e negros. E 41% estão em empregos precários. (Convergência Negra contra o Racismo – Carta de Guararema, 2020).

É urgente a visibilidade e reconhecimento da população negra. São diversas as forças contrárias aos afrodescendentes, além do desemprego, falta de qualificação profissional e educacional equitativa. Há também a perseguição territorial. Por exemplo, a absurda destruição da Amazônia brasileira e de todo arcabouço institucional de proteção ao meio ambiente, de forma a atender as demandas do agronegócio, transformando o país em mero exportador de commodities e prejudicando a agricultura familiar que produz a maior parte dos alimentos consumidos pela população brasileira. Estas ações atingem às comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas, que têm suas terras invadidas pelos ruralistas. Um bom exemplo é a iminente entrega da base de Alcântara, no Maranhão, aos Estados Unidos, que coloca em risco as terras das comunidades quilombolas e, consequentemente, parte da nossa memória cultural.

A 6º Semana Social Brasileira pode desempenhar um papel fundamental no estudo, debate e aprofundamento das questões acerca do fundamentalismo intolerante que incentiva o racismo religioso, bem como contra os retrocessos na luta pela regularização fundiária dos territórios ocupados pelos sem-terra, pelas comunidades negras quilombolas e pelos povos indígenas e, ainda, contra a fome, a pobreza, a desigualdade e o desemprego que provocam a insegurança alimentar e a miséria.

 

Bibliografia         

ÁGUAS, Carla Pimentel. Terra e estrutura social no Brasil: exclusão e resistência das comunidades negras quilombolas; 2012; Revista Angolana de Sociologia, p. 131-148. Acesso em 30/01/2020 < https://journals.openedition.org/ras/274>

BARBOSA, Rui. Pensamento e ação; Organização e seleção de textos pela Fundação Casa de Rui Barbosa. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 1999.

CORDOSO, Ciro Flamarion S. A Afro-América: a escravidão no novo mundo; Brasiliense, 1982; Coleção Tudo é história, nº 44.

GOLGHER, MARX na Conferência contra a Discriminação Racial-MG: https://www.geledes.org.br/a-questao-do-negro-no-brasil/

SOUZA, Jessé. A elite do atraso. Ed. Leya; 2017

 


[1] Graduado em Filosofia; Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da PUC Minas; Membro dos Agentes de Pastoral Negros do Brasil (APNs) e da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Comunidade Quilombola do Arturos.

[2] Graduado em Jornalismo; Assessor parlamentar do Deputado Vicentinho; Membro dos Agentes de Pastoral Negros do Brasil; Titular da Comissão Brasileira Justiça e Paz CBJP/CNBB; Conselheiro de Promoção da Igualdade Racial (2014-2018); autor de artigos e livros sobre temas étnicos-raciais.

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[3] A lei nº 601, de 18 de Setembro de 1850, a Lei de Terras determinava no artigo seu artigo 1º: ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por título que não seja o da compra.

[4] https://www.oxfam.org.br/noticias/bilionarios-do-mundo-tem-mais-riqueza-do-que-60-da-populacao-mundial/