"Contribuir com o fortalecimento das Organizações Sociais na perspectiva da defesa dos direitos e da transformação social, construindo parcerias e dando visibilidade a práticas sociais inovadoras".

Mulheres indígenas criam rede para apoiar artesãs durante a pandemia

Chamada de Rede Indígena Porto Alegre contra o Coronavírus, articulação é fruto do trabalho do Centro de Referência Afro-indígena do Rio Grande do Sul

 

Unidas pela luta, pela resistência e pela ancestralidade, as ativistas Alice Martins e Raquel Kubeo criaram uma rede de apoio emergencial para um coletivo de artesãs indígenas. Constituído há cerca de um ano no Centro de Referência Afro-indígena do Rio Grande do Sul, o grupo é formado por mulheres cuja renda dependia da comercialização de suas criações na região central de Porto Alegre – vendas que foram comprometidas com a pandemia.

Alice Martins e Raquel Kubeo (respectivamente, com cocar e sem na foto) coordenam a Referência Afroindígena do Rio Grande do Sul, recolhendo doações em comida, cobertas e roupas que depois distribuem entre diversas aldeias localizadas na região metropolitana de Porto Alegre, como a Tekuá Pindó Mirim, em Itapuã (Fotos: Flávio Dutra/JU)

Batizada de Rede Indígena Porto Alegre contra o Coronavírus, a articulação pretende garantir o direito à alimentação e o acesso a produtos de higiene necessários para a proteção contra a covid-19 dessas artistas e suas famílias. Como a maioria delas reside em comunidades nos extremos da capital ou em cidades da região metropolitana, ir ao centro para trabalhar representa um grande risco de se contaminar e de transmitir o vírus, uma vez que nesses territórios a saúde está profundamente sucateada e inacessível. “Neste momento da pandemia, não podemos deixar as mulheres sem ter seu subsídio na questão alimentar, pois elas não podem sair e se expor [ao coronavírus] para vender artesanatos. Minha rotina de militância não mudou, mudaram as demandas”, afirma Alice, que lidera o Centro de Referência Afroindígena.

Formada em meados de março, quando começaram as primeiras medidas de distanciamento social no Rio Grande do Sul, a Rede Indígena já realizou a entrega de mais de 600 cestas básicas. Elas foram conquistadas graças à primeira campanha online de arrecadação, encerrada dia 30 de maio, e a doações de alimentos e materiais diretamente no Centro de Referência, no bairro Cidade Baixa. Com a sequência da pandemia, e os números de mortes por coronavírus batendo recordes no estado, uma segunda campanha de arrecadação foi lançada pela rede – segue aberta até o dia 25 de agosto.

“Como a situação está durando mais do que esperávamos, tivemos que criar essa nova vaquinha. A Funai (Fundação Nacional do Índio) recebeu R$ 11 milhões para proteger os povos indígenas contra o coronavírus, mas esse dinheiro não chegou à população. Faltam cestas básicas e não houve distribuição de álcool gel”, conta Raquel, que tem aliado a fase de conclusão do mestrado em Educação na UFRGS com a divulgação da Rede Indígena na internet. Até o dia 13 de abril, segundo levantamento do Estadão, nenhum centavo do recurso destinado ao combate à covid-19 havia sido gasto pela Funai. No final de abril, o órgão gastou R$ 1 milhão dessa verba, mas com a compra de caminhonetes, também segundo o jornal.

Nesse cenário de precarização das políticas públicas, campanhas como as lançadas pela Rede Indígena ganham ainda mais importância. Na segunda vaquinha, inclusive, Alice e Raquel afirmaram que a ajuda não é necessária apenas para a compra de alimentos e materiais de higiene, mas também para consertar a estrutura do Centro de Referência. Por causa do ciclone bomba que atingiu o estado na noite de 1.º de julho, a casa onde fica o Centro de Referência, que já tinha problemas no telhado, foi ainda mais afetada. A chuva tem entrado na residência principalmente na parte da frente, formando uma poça d’água, o que também danifica o piso. “Caíram partes do telhado, que precisamos arrumar. Foi muita chuva”, lamenta Alice.

A ideia da rede é ampliar a arrecadação para fora da bolha de apoiadores comuns a fim de poder auxiliar ainda mais famílias. “Na primeira campanha, tivemos bastante engajamento das pessoas que eram parceiras do Centro de Referência Afroindígena do Rio Grande do Sul, pois estamos lutando por direitos básicos, como moradia e renda, e contra uma política de higienização imposta pelo poder público”, relata Raquel.

Doações em dinheiro podem ser feitas pelo site da campanha diretamente na plataforma Benfeitoria por depósito bancário ou boleto. Já alimentos, agasalhos, cobertores, produtos de higiene e fraldas podem ser entregues na sede do Centro de Referência (Travessa Comendador Batista, 26), mediante agendamento (confira mais detalhes no quadro abaixo).

Quando a reportagem visitou o local, Alice comentou que tem tomado todos os cuidados para a higienização das doações e pede que roupas e cobertores sejam doados limpos. “Quando chega alguma coisa, eu higienizo muito bem antes de trazer para esse quarto e, só depois de alguns dias, organizo a doação”, contou Alice, apontando para o espaço da residência onde são reunidos alimentos e materiais.

No último sábado, ela levou 23 cestas básicas para famílias guarani mbya da aldeia Pindó Mirim, em Viamão. “Sei que tem gente que prefere entregar diretamente na aldeia, mas é um risco muito grande levar o coronavírus para essas comunidades. Só posso me responsabilizar pelo que recebo e higienizo”, completa. Como a campanha é para auxiliar as mulheres artesãs e suas famílias, Alice contou que as entregas são feitas principalmente para as integrantes do coletivo em comunidades guarani mbya e kaingang de Porto Alegre e da região metropolitana, mas que também têm apoiado quilombolas e pessoas em situação de rua. “Sou militante da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul e juntos tecemos redes e procuramos sempre apoiar quem nos procura aqui. Somos todos irmãos e sofremos violações diariamente. O racismo é estrutural e é nosso dever cobrar o que nos é negado”, acrescenta.

Centro de referência luta por direitos das artesãs

Mulher indígena no contexto urbano, como gosta de ser definida, Alice tem uma história entrelaçada por várias lutas desde a infância. Natural de Porto Alegre, descendente dos povos guarani e kaingang, ela conta que os pais migraram para a cidade vindos de Pejuçara, município de menos de 4 mil habitantes próximo a Ijuí, no noroeste gaúcho. Na capital, o pai dela foi um dos primeiros conselheiros do orçamento participativo da zona leste – política pública de participação popular criada há 31 anos. “Todo dia, quando eu acordo, sei que terei uma nova luta, porque o corpo da mulher indígena é um território ancestral e político. A gente vai crescendo e vendo os direitos negados, a desigualdade com os povos indígenas e com os negros. Por isso, senti uma forte necessidade de atuar também em movimentos que reivindicam território, moradia e direitos básicos e acessos que nos são negados”, relata.

Moradora e liderança da Ocupação Baronesa, que ocupou em março de 2019 um imóvel da prefeitura abandonado há cerca de 10 anos na rua homônima, no bairro Cidade Baixa, Alice enfrenta a violência do Estado com a militância. Denunciou o corte no abastecimento de água no imóvel, reuniu argumentos para defender a ocupação na Câmara de Vereadores e na mídia, e testemunhou a reintegração de posse e a demolição do prédio, que ocorreram em junho e julho do ano passado.

Sem ter para onde ir, em julho, algumas famílias que foram desterritorializadas pela violência do Estado migraram para um imóvel abandonado há mais de 20 anos no mesmo bairro, a sede atual do Centro de Referência Afroindígena do Rio Grande do Sul. Foi ali que nasceu o trabalho com o coletivo de mulheres artesãs.

Antes da pandemia, Alice relata que o local acolhia mais de 10 artesãs por dia, que saíam de comunidades mais afastadas para comercializar suas criações no centro de Porto Alegre. “Tinha dias em que elas não conseguiam vender um colar sequer para ter o dinheiro da volta, então podiam ficar aqui. Algumas moram a duas horas do centro, não é fácil vir e voltar”, relata. Além do acolhimento, o espaço promovia rodas de conversa, oficinas de cestaria e de medicina tradicional, e articulava a participação das mulheres em feiras, atividades que tiveram de ser interrompidas por causa do coronavírus.

“A arte indígena é patrimônio cultural, mas não existem políticas públicas para as mulheres indígenas artesãs. Elas não são reconhecidas como artistas, são invisibilizadas. Conseguimos, por meio de muita luta, estar em duas feiras na Casa de Cultura Mário Quintana. Fizemos uma no ano passado em parceria com a Complô Cunhã e outra em março deste ano, no Dia Internacional da Mulher, ambas após incansáveis reuniões de negociação, mesmo sendo um espaço público e de cultura. A cidade, que é nosso território, não acolhe os povos indígenas nestes espaços.

Alice Martins

Neste momento de pandemia, as artesãs também enfrentam dificuldade para acessar o benefício emergencial do governo. “Uma coisa é ter a lei, estar lá escrito bonitinho. Outra coisa é acontecer de verdade. Eu fiz o cadastro de várias mulheres que ainda não receberam o auxílio; está “em análise”. A pandemia piorou o cenário do genocídio dos povos indígenas, que já sofriam diariamente com a desigualdade e com os direitos violados. Algumas pessoas buscam isso consciente ou inconscientemente por meio de escolhas políticas. Ou somos mortos pela cultura, por não poder ser quem somos, por etnocídio, ou de fome, pelo descaso do Estado”, critica.

Atriz, bailarina e professora, Raquel relata que o setor cultural já vinha vivendo um período difícil há pelo menos três anos, com o escasseamento de editais com vagas para a arte indígena. “Não sabemos também se as artesãs terão acesso ao auxílio de cultura da lei Aldir Blanc, porque não estão nem tendo acesso ao emergencial. Existem leis, mas elas não contemplam a gente. A Funai (Fundação Nacional do Índio) e a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), por exemplo, não estão amparando quem está na cidade”, denuncia.

Universidade reproduz racismo estrutural

Manauara do povo kubeo, Raquel conta que, assim como Alice, nasceu no contexto urbano, em uma periferia da capital amazonense. Formou-se em Pedagogia e chegou a Porto Alegre pela primeira vez há uns quatro anos para tentar uma vaga no mestrado em Educação da UFRGS. Na Universidade, participa do coletivo de alunos indígenas e luta pela mudança da estrutura hegemonicamente branca e elitista da instituição. “Eu quis estudar aqui porque sabia que era uma das melhores universidades do país, mas quando cheguei vi que o gaúcho tem um pensamento muito racista ainda, se autodenomina europeu. Nestas eleições para a reitoria, só vi gente branca concorrendo e me senti desanimada, não há diversidade”, lamenta.

Outro problema da UFRGS, conforme Raquel, é não reconhecer devidamente os saberes ancestrais.

“A tia Iracema [Nascimento] é uma grande mestra da cultura kaingang, mas não é reconhecida como uma professora pela Universidade. Ela dá aulas, mas não tem nem um contrato conforme a CLT (Consolidação das Leis de Trabalho). Nosso trabalho está muito na informalidade ainda, não deixa de ser uma exploração. A gente não saiu da escravidão, o [Ailton] Krenak fala muito isso. Essa burocracia, a exigência do diploma, impede que a ancestralidade seja reconhecida. Quantas pesquisas acadêmicas foram feitas a partir do conhecimento da tia Iracema, mas assinadas por pessoas brancas? Ela não aparece nem como coautora, mas eram os saberes dela. Ela poderia ter vários doutorados, mas há uma visão colonial ainda.”

Raquel Kubeo

Sobre suas experiências em sala de aula e nos espaços acadêmicos, Raquel também conta que tem de passar por diversos preconceitos. “Eu, que sou aluna, profissional e pesquisadora, não tenho a fala reconhecida. Somos reconhecidos como bichos do mato; a instituição inferioriza a gente. Há uma visão antropológica etnocêntrica ainda. Fui corrigida por uma pessoa branca em um evento, que disse que o que eu falei estava errado. Eu falei da minha cultura, do meu povo. Cada povo indígena tem uma cultura diferente”, relata a mestranda.

Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a pesquisadora também relata a dificuldade de inserção dos alunos das ações afirmativas na hierarquia universitária e nos grupos de pesquisa, principalmente com a pandemia, quando o acesso às bibliotecas, aos computadores, à internet e aos laboratórios da Universidade foi restringido. “Eu que sou urbana, não muito diferente de uma pessoa da periferia, tive dificuldades para me encaixar em grupos de pesquisa e entender o funcionamento da pós-graduação, assim como outros colegas das ações afirmativas em geral. É preciso se adequar à linguagem da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), ter proficiência em língua estrangeira e correr atrás das leituras obrigatórias, que são difíceis. A universidade não faz essa diferenciação, é todo mundo no mesmo nível e cada um que lute como possa, que se vire”, conta Raquel, que pesquisa sobre a literatura indígena e a escrita multiformato.

Acadêmica de Pedagogia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Alice também critica a estrutura racista e elitista da academia. “Não vejo a universidade como espaço que possa dizer que está na luta junto, porque não nos acolhe de verdade. A universidade não pode sequer se colocar como um apoio da luta antirracista, porque tudo foi conquistado a duras penas. Na UFRGS, o processo de cotas só aconteceu porque a gente acampou lá. Há professores e pessoas que gostam de apoiar, mas não é a instituição em si”, avalia.

Para mudar esse sistema universitário, Alice afirma que “teria de começar de novo, incluindo políticas públicas para indígenas em todos os contextos, com espaço para o protagonismo”. Para ser antirracista, segundo ela, a universidade também precisa ter reitores, diretores, professores e técnicos indígenas, não apenas cotas para os alunos. “O espaço que a universidade ocupa, assim como todo o país, é território ancestral, indígena. Queremos caminhar novamente onde nossos ancestrais caminhavam, ocupar espaços que atualmente nos são negados”, completa.