Por Luis Fernando Donadio
Coordenador de Captação da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz.
Assessor do Cais para Captação de Recursos
Faltando poucos minutos para findar 2019, fiz o registro de minha filha com boca aberta abduzida pela beleza dos fogos que começavam a pipocar no céu, anunciando a chegada de um novo ano. Entusiasmado com a fotografia escrevi em uma rede social: Que seja de cair o queixo. Não era para tanto! 2020 chegou e, com ele, no dia 26 de fevereiro o primeiro registro oficial no Brasil de Covid-19. Desde então os impactos registrados são inúmeros, sendo o mais duro e cruel deles, as milhares de vidas ceifadas pela pandemia. Como em outros momentos difíceis da história, ventos de esperança costumam soprar em dias de tristeza e uma das brisas de alento deste período tem sido o movimento solidário e generoso da população brasileira em apoio a causas que buscam mitigar os impactos da doença junto as populações mais vulnerabilizadas.
Segundo o monitor de doações da Associação Brasileira de Captadores de Recursos [1], mais de 6 bilhões de reais foram doados por 543 mil doadores em 539 diferentes campanhas por todo o território nacional. Para a cultura de doação do nosso país, um número inédito, considerando a relação do volume de recursos e o tempo de arrecadação. Este dado por si só já nos permitiria realizar diversas análises, mas aqui escolho focar nossa reflexão sobre como as organizações sociais, com pouca, ou nenhuma, experiência de captação e/ou estruturas limitadas de comunicação, lideram com este contexto de solidariedade.
Pesquisa recente conduzida pelas consultorias Mobiliza e Reos Partners [2] aponta que duas em cada dez instituições do país, no mês de julho, já estavam sem fundos para manter projetos e dar continuidade às atividades junto às comunidades em que atuam. Já o monitor de doações da ABCR apontou que 75% dos investimentos feitos durante a pandemia foram direcionados para iniciativas relacionadas a saúde, o que naturalmente diminui a entrada de recursos em outras áreas. O que foi cenário de crescimento de recursos para alguns, se revelou de escassez para outros.
Muitos captaram neste período, sendo que as maiores campanhas de arrecadação mapeadas pelo mesmo monitor foram realizadas por grupos que se articularam montando fundos específicos ou organizações que criaram e/ou adaptaram suas ações de comunicação com frentes voltadas ao enfrentamento da pandemia. Além das grandes campanhas, vimos organizações de todos os tamanhos, em todas as regiões do país, alcançarem e, em muitos casos, superarem exitosamente as metas que se propuseram. Houve de tudo: crowdfunding, matchfunding, doações coorporativas, parcerias de marketing relacionada a causa, lives, acordos judiciais, entre outros [3].
Mas o que as campanhas bem sucedidas, independentemente do tamanho e visibilidade da organização que a coordenava, tinham em comum? Ouso responder destacando ao menos cinco fatores:
1) Percepção do timing para construção de ações alinhadas ao contexto da Covid-19;
2) Comunicação objetiva, com respostas ao enfretamento da pandemia e convite claro ao engajamento da sociedade/instituições;
3) Instrumentos que facilitavam a doação digital;
4) Mecanismos de transparência sobre à aplicação e os resultados gerados pela doação;
5) Pessoas dedicadas, ainda que voluntariamente, ao processo de captação.
O que pode parecer simples, e de fato é, foi o entrave para centenas de pequenas/médias/grandes organizações, que apesar dos papéis relevantes que exerceram na pandemia não conseguiram engajar uma base expressiva de doadores e doações. A ausência de investimentos ao longo dos últimos anos, em estruturas mínimas que aperfeiçoassem a forma como captam seus recursos e comunicam suas causas, foi sentida neste momento. Diversos foram os casos de organizações com atuação local, que mobilizaram expressivamente mais engajamentos que outras, de mesma área de atuação, mas com capilaridade nacional. Ao meu ver, isto se deu basicamente por conta dos fatores apresentados acima.
Muitas das nossas organizações, em especial aquelas com atuação de base e dependência histórica de fundos internacionais, pouco avançaram nos últimos anos em sua comunicação e seus de mecanismos de sustentabilidade. Com isto, ainda hoje enfrentam dificuldades para um engajamento social maior em suas causas, por mais relevantes estas sejam. Sem querer ser reducionista, acredito que simples decisões organizacionais, como a inclusão de quadros profissionais que se dediquem de forma continua a mobilização de recursos e a comunicação institucional (não a jornalística), já poderia fazer uma grande diferença a médio prazo.
Exemplo recente que tive o privilégio de acompanhar é o da Gestos – Organização de médio porte da cidade de Recife, que há vinte e sete anos atua para a garantia dos direitos humanos das pessoas que vivem com HIV e a AIDS. Dez meses antes do início da Covid-19 no Brasil, Gestos iniciou à estruturação de uma área dedicada a captação de recursos, com o desenvolvimento de ações como: construção de um planejamento de captação; contratação de profissional para se dedicar ao mesmo; implantação de ferramentas que facilitam a obtenção/retenção da doação (CRM, Réguas de relacionamento e fichas de doação para campanhas digitais) [4].
O resultado foi que durante o período da pandemia a organização viu seu número de doadores crescer em quase 120%. Algo que dificilmente teria alcançado caso não estivesse estruturada.
O grande volume de recursos doados durante a pandemia não irá permanecer na medida em que superarmos este cenário. Os indicadores de doação já demonstram uma volta a “normalidade”, porém, o que permanece é o fortalecimento da cultura de doação no país, assim como o aprendizado de que é possível engajar a sociedade/empresas em causas sociais, independentemente do tamanho ou da visibilidade que a organização tenha. Mas para isto se faz necessário que as mesmas continuem a aperfeiçoar seus processos de captação, comunicação e transparência.
Parece estar definitivamente enterrado o mito de que brasileiro não doa, mas é importante não esquecermos que pessoas e instituições continuarão a doar para organizações/causas que as convidem ao engajamento e saibam comunicar com transparência seus resultados.
[1] www.monitordasdoacoes.org.br
[2] mailchi.mp/mobilizaconsultoria/covid19
[3] Crowdfundig: modelo de captação baseado na economia colaborativa, onde várias pessoas se identificam com um projeto e resolvem apoiá-lo.
Matchfunding: modelo de Crowdfunding, em que ocorre a participação de uma empresa ou instituição. Também conhecido como Financiamento Misto, possui um funcionamento em que para cada real que uma pessoa colocar em uma campanha, a empresa ou instituição participante do programa pode duplicar ou triplicar o valor da colaboração.
Marketing relacionada a causa: parceria comercial entre empresas e organizações da sociedade civil, que utiliza o poder das marcas em benefício mútuo. É, portanto, uma ferramenta que une as estratégias de marketing das companhias às necessidades da sociedade, trazendo benefícios para a causa e para os negócios
Acordos judiciais: Verbas oriundas de compromissos de ajustamento de conduta ( TACs), composições civis, transações penais ou acordos judiciais.
[4] CRM: Customer Relationship Management é um termo em inglês que pode ser traduzido para a língua portuguesa como Gestão de Relacionamento com o Cliente. Foi criado para definir toda uma classe de sistemas de informações ou ferramentas que automatizam as funções de contato com o doador.
CAIS | Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativas Sociais