"Contribuir com o fortalecimento das Organizações Sociais na perspectiva da defesa dos direitos e da transformação social, construindo parcerias e dando visibilidade a práticas sociais inovadoras".

Diálogo é fundamental para um mundo sem “nós” quando o assunto é migração

Migrantes que vivem no Brasil relatam seus desafios e apontam caminhos para a construção de um mundo sem muros.

O seminário “Migração e Diálogo: Quem bate a sua porta?” integrou a programação da Semana do Migrante

Por Paulo Victor Melo | Especial para o JSB

“Meu lugar agora é aqui no Brasil!”. A enfática afirmação de Nadine Sylvain, haitiana que vive no Brasil há nove anos e atualmente reside em Curitiba (PR), lembra as palavras do Papa Francisco sobre a importância de sonharmos – e construirmos – um mundo sem distinção entre “nós” e os “outros” (migrantes).

Em Mensagem para o 107º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, o pontífice disse que “na realidade, estamos todos no mesmo barco e somos chamados a empenhar-nos para que não existam mais muros que nos separam, nem existam mais os outros, mas só um nós, do tamanho da humanidade inteira”.

A referência aos muros, feita pelo Papa Francisco, foi utilizada também por Banuma Pinto, guineense que vive em Fortaleza (CE), ao frisar que, se não estivermos abertos para aceitar e ouvir o outro, “criamos um muro, um muro que esmaga, que cria ódio, racismo e xenofobia”.

Nadine, que é estudante de Serviço Social e estagiária na Pastoral do Migrante de Curitiba, e Banuma, que estuda na Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira, participaram do Seminário Teológico “Migração e Diálogo: quem bate à nossa porta?”, realizado na última quarta-feira (17), e relataram alguns dos desafios enfrentados por migrantes no Brasil.

Outro importante testemunho foi o de Dilumar Tempo, venezuelana migrante em Boa Vista (RR), que falou sobre dificuldades no acesso à educação, trabalho e renda, por populações que chegam ao Norte do país.

Vinda de Guiné-Bissau, país de língua portuguesa localizado na Costa Ocidental da África, Banuma chamou a atenção para as mudanças de olhar e tratamento dos migrantes, a depender das suas nacionalidades, o que aponta para a articulação entre xenofobia, racismo e colonialidade.

“A forma como o imigrante africano é tratado aqui é igual a como os outros imigrantes são tratados?”, questionou Banuma, ao ressaltar que “a forma como somos tratados [migrantes africanos] é diferente de quando chega um europeu ou americano”.

O questionamento de Banuma nasce a partir da sua própria vivência enquanto mulher negra africana que vive há quase cinco anos no Brasil. “A aceitação do corpo, como essa pessoa é vista, é alarmante. Já sofri o preconceito, o racismo. O estrangeiro não é um corpo vazio, mas é uma pessoa que carrega uma bagagem que envolve a questão cultural, política, social, ‘n’ fatores que estão por trás desse corpo”, disse.

Na mesma perspectiva, Nadine criticou que “há muita visão do migrante como inimigo, como alguém que vem para roubar o emprego”. Ela contou que, desde que chegou ao Brasil, após ter vivido em países com República Dominicana, Chile e Peru, já se sentiu “vista com muito preconceito, como a ‘negra que não presta”.

Nadine Sylvain, haitiana que vive no Brasil há nove anos e atualmente reside em Curitiba (PR)

Tanto Nadine quanto Banuma acreditam que um primeiro passo para a construção de um mundo sem distinção entre nós e os outros, como propõe o Papa Francisco, é o agir no sentido de procurar conhecer o outro.

“Precisamos de um olhar de fraternidade, de paz, de amor para acolher o outro, para que as gerações vindouras possam viver em fraternidade”, afirmou Banuma, lembrando que a partir do momento em que africanos de diferentes nacionalidades começaram a chegar para estudar na UNILAB a população começou a ter um olhar diferenciado sobre o “ser africano”.

Já Nadine, que trabalha contribuindo para o acolhimento e integração de migrantes no Sul do país, compreende ser essencial “entender, conhecer e saber a realidade dos migrantes”.

Diálogos com Francisco

Antes das vozes protagonistas de Nadine, Banuma e Dilumar, o Seminário teve a reflexão de lideranças religiosas que têm uma história pessoal e uma trajetória de serviço pastoral diretamente relacionada à migração: pastora Romi Bencke, do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil; Sandro Galazzi, da Comissão Pastoral da Terra; Paulo Suess, do Conselho Indigenista Missionário; e padre Alfredo Gonçalves, do Serviço Pastoral do Migrante.

As exposições de todas essas lideranças as colocam em diálogo com o Papa Francisco, quando enfatizou, também na sua Mensagem para o 107º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, que “no encontro com a diversidade dos estrangeiros, dos migrantes, dos refugiados e no diálogo intercultural que daí pode brotar, é-nos dada a oportunidade de crescer como Igreja, enriquecer-nos mutuamente”.

Para Romi Bencke, o tema da migração fala sobre diálogo, mas também questiona os silêncios. “Quais são os temas silenciados? Quais são as experiências humanas silenciadas? Esses silêncios nos remetem às perguntas: por que as pessoas migram? Por que as pessoas não têm o direito de ficar no lugar em que elas desejam estar?”, pontua ao afirmar que “assim como temos o direito de ir e vir temos o direito de permanecer onde nós queremos permanecer”.

No entendimento da pastora Romi, a discussão sobre migrações também contribui para a reflexão sobre os hegemonismos econômicos, políticos e religiosos. “Quando falamos em migração, é fundamental falarmos sobre as formas atuais de colonialismo, que estão presentes nas inúmeras teologias fundamentalistas, que são antidialógicas, que não querem saber da diversidade, que não querem o reconhecimento da legitimidade dos povos originários e tradicionais e que têm como objetivo cada vez mais declarado o expulsar as pessoas de suas terras”, criticou.

Buscando inspiração nos ensinamentos do Evangelho e utilizando passagens bíblicas, Sandro Galazzi indagou: “alguém que viesse bater a minha porta hoje, sem ouro, sem prata, sem sacola, sem nada, como é que seria recebido?”.

O próprio Galazzi, da CPT, apontou provocações para o seu questionamento: “provavelmente a gente olharia com muita desconfiança, faria um monte de perguntas, a porta ficaria fechada e esquecemos, com isso, que deixamos de fora o apóstolo. Porque foi assim que Jesus mandou os seus apóstolos, migrantes, sem nada. É o modelo do apóstolo, aquele que sabe que precisa do outro para poder viver. Porque sabe que quem trabalha é digno de ser alimentado. Mas vai que o outro não entenda isso? Vai que o outro entenda que você veio aqui para roubar o trabalho dele?”.

Vencer a lógica do poder

Já Paulo Suess, do CIMI, abordou as lógicas de poder que se processam em torno da questão migratória e argumentou que “vivemos numa lógica de desterritorialização para criar novos latifúndios e os grandes latifúndios hoje são os latifúndios dos meios de comunicação, o latifúndio do capital, do saber privilegiado e o latifúndio da terra e do território”.

Pensando as alternativas e saídas para a problemática, Suess destacou que “não temos uma solução em relação à migração que possa dispensar as lutas políticas dentro dessa modernidade, não podemos voltar para a pré-modernidade, para o fundamentalismo, para estruturas não democráticas e sem direitos humanos”.

Centrando sua análise na questão do diálogo, o padre Alfredinho, do Serviço Pastoral do Migrante, por sua vez, alertou para a necessidade de “abertura de poços” como mecanismo de encontro, de troca e de partilha.

“Abrir poços para que os poços possam fazer com que sede e água se encontrem. Cada cultura tem esses dois elementos, essa ambiguidade da sede e da água. Somente quando abrirmos a oportunidade de que essa sede e essa água se encontrem é que podemos falar de diálogo, de que a porta se abriu. Se você abre a porta, iremos nos nutrir juntos. Se você não abre, você vai perder a oportunidade. Evangelizar é abrir poços, às vezes poços proibidos. É preciso abrir poços com os que estão lá fora, com os que são estrangeiros. É preciso fazer com o que forasteiro se torne irmão e anfitrião, e aí ele vai ter muito a nos dizer. E isso é riqueza e desafio”, indicou.

O seminário “Migração e Diálogo: Quem bate a nossa porta?” integrou a programação da 36ª Semana do Migrante realizada entre os dias 13 e 20 de junho de 2021 pela Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Sociotransformadora da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM), Jubileu Sul Brasil, 6ª Semana Social Brasileira, entidades parceiras e apoiadoras. A iniciativa faz parte dos Encontros sub-regionais sobra a situação das pessoas deslocadas e migrantes na região do Cone Sul e integra a ação de Fortalecimento da Rede Jubileu Sul Brasil, com o cofinanciamento da União Europeia.

Sobre o tema

Em dezembro de 2020 o Jubileu Sul Américas lançou o estudo “Migrações: realidades, lutas e resistências”. A publicação foi elaborada por uma equipe multidisciplinar de pesquisadores/as, o estudo traça um panorama dos processos de migração na região latinoamericana e caribenha e aborda os marcos jurídicos relativos à proteção dos direitos humanos de pessoas migrantes.  A publicação também detalha as políticas migratórias e ressalta experiências de pessoas migrantes em cinco países específicos: Argentina, Brasil, Haiti, Honduras e México.