"Contribuir com o fortalecimento das Organizações Sociais na perspectiva da defesa dos direitos e da transformação social, construindo parcerias e dando visibilidade a práticas sociais inovadoras".

Delegação da CNBB visita comunidades afetadas pela mineração no Vale do Ribeira de São Paulo e Paraná

Os povos do Vale lutam pelo direito de permanecer e produzir em seus territórios e denunciam empresas mineradoras

 

*Por Comunicação da APC

 

 

Percurso de três dias por estradas sinuosas, incluindo trechos de asfalto e terra, travessia de balsa, paisagens deslumbrantes e acolhimento caloroso dos povos dos quilombos e das cidades com suas produções agroecológicas. Neste trajeto existem beleza, fé e luta em defesa da vida e da casa comum. A Comissão Especial para Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CEEM-CNBB), em parceria com organizações religiosas, movimentos e coletivos, estiveram reunidos entre os dias 20 e 22 de abril em visita às comunidades quilombolas e população da cidade atingidas por barragens na região do Vale do Ribeira. A região, localizada entre os estados de São Paulo e do Paraná, possui dezenas de povos e comunidades tradicionais formados por indígenas, caiçaras e quilombolas que são impactados por empreendimentos de mineração e sofrem com a discriminação do racismo ambiental.

A visita atendeu um convite das organizações que atuam nas comunidades do Vale do Ribeira SP/PR, teve como objetivo proporcionar momentos de escuta e conhecer melhor a situação das comunidades e os danos socioambientais causados pelas mineradoras.  Ao visitar as realidades locais, a delegação contribuiu para dar visibilidade às reivindicações e avaliar encaminhamentos. Além das mineradoras afetarem os territórios dos povos e comunidades tradicionais, os empreendimentos avançam contra as comunidades da cidade, como é o caso de Adrianópolis (PR), que faz divisa com o estado de São Paulo.

Junto à Comissão Especial para Ecologia Integral e Mineração (CEEM), integraram a delegação a Rede de Congregações Religiosas Vivat-Brasil, o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as Irmãs de Santa Cruz, as Irmãs de Jesus Bom Pastor – Pastorinhas, a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira SP/PR (EAACONE), o Movimento de Ameaçados por Barragens do Vale do Ribeira SP/PR (MOAB) e o coletivo Formigas Adrianópolis do Paraná. A delegação contou com a presença de Dom Norberto Förster, bispo da Diocese de Ji-Paraná, Rondônia e que integra a (CEEM-CNBB) e encerrou com o encontro com Dom Manoel Ferreira dos Santos, MSC, bispo diocesano de Registro (SP).

Segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 35% da população da região do Vale do Ribeira é formada por povos quilombolas, ou seja, trata-se de um povo centenário e pertencente àquele chão. Os povos tradicionais da região, que são organizados e mantêm articulações com os organismos da Igreja, além do reconhecimento como povos tradicionais, reivindicam reparação das violações, acesso às políticas públicas e o direito de permanecer em seus territórios.

 

Comunidade de Porto Velho . Foto| Cláudia Pereira – APC

Ao visitar e ouvir os enfrentamentos e as lutas dos povos da região do Vale do Ribeira SP/PR, a Comissão observou que, onde existem ameaças e especulações de exploração de minério, as comunidades resistem e lutam para impedir o avanço dos projetos das mineradoras e preservam as suas atividades da agricultura sustentável. Nos locais por onde as mineradoras já se instalaram, é visível o descaso do poder público quanto do poder privado com a população mais pobre, resultando em danos ambientais graves.  Ambas as situações necessitam de maior visibilidade. A biodiversidade do Vale está ameaçada pelos grandes empreendimentos de mineração, que, no silêncio da madrugada ou à luz do dia, escoam pelas montanhas diariamente, toneladas de calcário, gesso e outros minerais.

Alto do Vale do Ribeira – Foto| Cláudia Pereira – APC

 

Comunidade quilombola de Porto Velho enfrenta a especulação do minério

 

A primeira visita foi na comunidade quilombola de Porto Velho, em Iporanga (SP), que reuniu lideranças de outras comunidades. A comunidade acolheu a todos com as diversidades das produções da comunidade: frutas, mel, verduras e mandioca. Ao som de um xote em defesa do quilombo e junto às imagens dos santos festejados, a comunidade apresentou seu povo e a sua luta. Detentora de saberes e conhecedora de sua própria história, a comunidade de Porto Velho enfrenta a mineração há muitos anos. Na busca da terra prometida, na década de oitenta, ao refletir uma passagem bíblica optou por buscar sua autonomia, lutou pela titulação de suas terras e conseguiu conquistá-las. Atualmente, resiste contra a exploração de minério, que ameaça seu modo de vida, suas culturas e as produções agroecológicas.

O território está incluído no mapeamento de pedidos de concessão para exploração de minério que abrange praticamente todo o Alto Vale do Ribeira. São mais de 120 empresas solicitando extração de mineração; alguns pedidos estão em processo, outros em análises. Nas proximidades da comunidade está em andamento a construção da ponte Itaoca que liga os estados de São Paulo e Paraná sobre o rio Ribeira, uma obra pública que certamente atenderá o escoamento da extração do minério e substituirá a travessia de balsa.

 

“Esses empreendimentos ameaçam a extinção praticamente de todos os territórios dos quilombolas do Vale”

 

Para Osvaldo dos Santos, uma das lideranças da comunidade, a presença da Comissão da CNBB é para além da visibilidade da luta do território. Ele define que a presença da CEEM junto às demais organizações contribui para mostrar o novo modelo de escravidão que os quilombos sofrem diariamente. “Esses empreendimentos ameaçam a extinção praticamente de todos os territórios dos quilombolas do Vale. Nós somos centenários, temos direito a preservar a memória dos nossos ancestrais e nosso modo de vida. A mineração destrói sonhos, vidas e tudo que é sagrado. Lutamos pelo direito de viver em paz e pela reparação de nossos direitos” – ressaltou Osvaldo.

Padre Joaquim Rosa, svd, que é filho do quilombo, afirma que a presença da delegação é importante para o povo que grita por socorro. “Este momento para o Quilombo é mais um passo de enfrentamento para o povo tradicional quilombola. A Comissão escutou o clamor do povo e através de seus conhecimentos e partilha colabora com os processos de luta da comunidade e todo o território”.  Conclui o padre Joaquim.

 

Exploração de calcário no Alto do Vale do Ribeira. Foto| Cláudia Pereira – APC

Comunidades quilombolas do Médio Ribeira ameaçadas

Na comunidade quilombola de André Lopes, localizada no médio Ribeira em Eldorado (SP), representantes de várias comunidades apresentaram os diversos desafios enfrentados. As comunidades destacaram a longa trajetória de luta e resistência dos povos do Vale, que garantiram conquistas e direitos dos territórios com a presença da Igreja Católica desde a década de 1970. “O momento atual não é diferente de outros tempos”, disse uma das lideranças, referindo-se à expansão das atividades mineradoras na região. Em um círculo reunido em volta de um pilão, no centro, uma faixa que enfatiza o valor do Rio Ribeira como patrimônio da humanidade, as lideranças expressaram suas principais preocupações.

Entre apontamentos, as comunidades falaram sobre as recentes abordagens do Serviço Geológico Brasileiro de Pesquisas nos territórios, do qual as comunidades vetam a entrada. A empresa, que se caracteriza como mista, cujos interesses atrelam parcerias entre o público e o privado, tem a função de pesquisar tipos de minérios, localização e processos. Depois das análises, a empresa apresenta as informações ao mercado de exploração. É uma forma grave de ameaças aos territórios.

Nas áreas em que as mineradoras invadiram, além dos estragos, as comunidades enfrentam os avanços de grupos que ameaçam com a exploração de minérios, barragens e plantação de Pinus, que geram grandes impactos socioambientais.

 

“Não bastasse tudo isso, lutamos pela demarcação e titulação de nossos territórios”

 

Os grandes empreendimentos, além de avançar contra as comunidades na região, desenvolvem discurso e ações persuasivas capazes de cooptar os jovens das comunidades com a promessa de melhorias de vida. Os povos locais mantêm atualizado seus conhecimentos para evitar avanço dos grandes empreendimentos e o garimpo ilegal. As comunidades buscam o diálogo com os órgãos de representação pública, para debater sobre a mineração “legal” e ilegal. As comunidades possuem um Protocolo de Consulta Prévia dos Territórios do Vale do Ribeira/SP, que fortalece a reivindicação e permanência das comunidades quilombolas, respeitando seu modo de vida.

“Enfrentamos diversas ameaças. Além da mineração, o assédio de crédito de carbono, a privatização de parques, ameaças do próprio governo com implantação de programas que beneficiam essas empresas… os nossos recursos naturais estão ameaçados. Não bastasse tudo isso, lutamos pela demarcação e titulação de nossos territórios. A presença da CNBB aqui em nossas comunidades fortalece a nossa luta”. Afirmou André, representante de comunidades e movimentos.

As crianças que frequentam a escola infantil municipal, convivem com a poeira da fábrica que está instalada ao lado da escola. Foto| Cláudia Pereira – APC

Adrianópolis: os impactos da exploração de minério no passado ainda persistem

 

O município, que no passado era conhecido como Paranaí – denominação que muitos habitantes desejam retomar – foi emancipado em 1937, recebendo o nome de Adrianópolis em homenagem ao explorador de minério português Adriano Seabra da Fonseca. O empresário e proprietário da extinta fábrica Plumbum é visto por muitos como um importante promotor do desenvolvimento do município, quando, na verdade, é responsável por grande devastação. A extinta fábrica Plumbum extraiu da região chumbo e prata por aproximadamente 50 anos e encerrou suas atividades em 1995, quando secou a fonte de minério. Como consequência, a empresa deixou para trás um legado de destruição ambiental, com toneladas de resíduos minerais que contaminaram o solo, exposição de chumbo a céu aberto e nas margens do rio Ribeira, pessoas contaminadas, acidentes de trabalho e mortes de funcionários, devido às condições irregulares no ambiente de trabalho.

A empresa foi denunciada formalmente no ano de 2011, após comprovação de pesquisas acadêmicas; em 2014, a Justiça Federal determinou à Plumbum implantar medidas de recuperação ambiental na área de sua antiga metalúrgica. Mas, o que a população observa é que nada tem sido feito.

Atualmente a população de Adrianópolis enfrenta a poluição causada pela fábrica Supremo Secil Cimentos que explora as montanhas do Vale com a retirada de calcário, um dos componentes para a fabricação do cimento. A fábrica, que foi instalada em 2015, produz mais de um milhão de toneladas de cimento por ano. Os relatos dos moradores e o que a reportagem que acompanhou a Comissão da CEEM pôde constatar in loco evidenciam o total descaso do poder público e da fábrica com a população mais vulnerável que mora ao entorno da indústria de cimento.

 

“Tá cada dia mais difícil pra gente respirar aqui, por causa dessa poluição”

 

Os moradores dos bairros Vila Bela e do Km 04 convivem vinte e quatro horas por dia com os ruídos da fábrica e a poeira, que parece resíduo de cimento, que irrita os olhos, a garganta e a pele das pessoas. Os moradores do Km 04 convivem com o barulho e o perigo iminente de pedras caírem sobre suas casas, em razão das esteiras que transportam a matéria prima entre as montanhas para a fábrica de cimento. Os moradores relatam que ao menos duas vezes por semana há um forte odor no período noturno, quando a fábrica realiza incineração da queima de lixo. Essa incineração tem como finalidade gerar energia térmica que se transforma em energia elétrica para a fábrica. “O problema não é fazer isso para gerar energia, mas que tipo de lixo eles estão queimando?”, frisou um dos moradores.

“Está cada dia mais difícil pra gente respirar aqui, por causa dessa poluição; fica pior quando eles queimam os resíduos para alimentar as máquinas. O cheiro é muito forte”. Denunciou um dos moradores que prefere não se identificar. Os moradores afirmam que no processo de instalação da fábrica as promessas eram de melhorias para o município e que a fábrica não iria modificar a vida das pessoas que moram nos bairros próximos à indústria. A fábrica se instalou ao lado de uma escola municipal e no meio dos bairros onde os moradores moram há décadas.

 

“Fizeram essas correias sobre as nossas moradias sem perguntar; depois de instaladas, já caíram pedras sobre as nossas casas”

 

As pessoas entrevistadas relatam que a maior parte dos funcionários do Supremo Secil Cimentos são de outros municípios e o percentual de moradores que trabalham na indústria é mínimo. A justificativa que a empresa alega é que os moradores não têm capacitação suficiente para o modelo de mercado que exercem.

“Nós moramos aqui desde 2004 aqui no bairro e quando a fábrica chegou nunca perguntaram se podia fazer isso aqui. Fizeram essas correias sobre as nossas moradias sem perguntar; depois de instaladas, já caíram pedras sobre as nossas casas. Disseram que iriam nos indenizar e colocar em outra área, agora dizem que o sistema de correias que transporta as pedras é seguro” – relatou um morador. A vida das pessoas que moram na região onde a Supremo Secil Cimentos se instalou é afetada por muitos fatores. A saúde dos moradores foi completamente afetada, muitos sentem incômodos para respirar.

“É uma poluição visível e invisível. Quando a gente deixa objetos no quintal, no dia seguinte o material é totalmente tomado por uma crosta que não sai apenas com água e sabão, precisa colocar outras substâncias para limpar. As correias que passam sobre as nossas casas já estouraram, eles reparam o que quebram, mas isso não garante segurança. Nós estamos pedindo socorro porque as autoridades daqui não ouvem o nosso grito”. Denunciou outro morador

 

Momento de escuta da população das comunidades de Adrianópolis (PR). Foto| Cláudia Pereira – APC

Diante das violações, os moradores que se mantêm encaminharam as denúncias ao Ministério Público; o processo está em andamento e sem definição. Houve uma audiência pública no município que debateu as denúncias, mas não avançou muito na construção de diálogo com a empresa. Em resumo, desde a instalação da fábrica na cidade o impacto para a sociedade é bastante negativo. A reflexão feita pelos movimentos e organizações que enfrentam a realidade socioambiental de Adrianópolis é que todos estes crimes são praticados com anuência do Estado e com injeção de dinheiro público. Os moradores se mantêm organizados e atualizados para cobrar direitos, reparação e acesso às políticas públicas.

 

Esperança e luta em defesa da casa comum

No último dia de visitas, a delegação reuniu-se com Dom Manoel Ferreira dos Santos, MSC, bispo diocesano de Registro (SP) e compartilhou das percepções realizadas no percurso das visitas às comunidades afetadas. Representando a Comissão Especial para a Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CEEM-CNBB), o padre Dário Bossi analisou que são vários os sujeitos que atuam no conflito. “Nós vimos comunidades quilombolas organizadas, vimos seus esforços para preservar a natureza e seus recursos, com propostas que valorizam a agroecologia, o turismo comunitário. É possível uma economia local que não dependa da mineração; o direito dos povos a dizer não à mineração é sagrado, deve ser respeitado. Nos lugares onde as mineradoras avançaram, a luta é diferente, cobrando o poder público e privado para que cumpram sua responsabilidade social e ambiental e respeitem a legislação ambiental. Frente aos danos e violações, deve haver reparação integral. A tributação das mineradoras e a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais deve estar a serviço das comunidades e administradas de forma participativa” – comentou padre Dário Bossi.

 

Dom Manoel Ferreira dos Santos, MSC e Dom Norberto Förster, bispo da Diocese de Ji-Paraná, Rondônia com integrantes da delegação. Foto| Cláudia Pereira – APC

 

*Texto publicado originalmente no  site da Cepast- CNBB