"Contribuir com o fortalecimento das Organizações Sociais na perspectiva da defesa dos direitos e da transformação social, construindo parcerias e dando visibilidade a práticas sociais inovadoras".

Conhecimento que potencializa a luta por direitos dos povos e comunidades tradicionais

Alunos da 3ª turma do curso de Direito Agrário, partilham experiências em acessar o conhecimento jurídico para a defesa dos povos, territórios e questões socioambientais

 

*Por Cláudia Pereira |APC

 

Nesta quarta-feira (25) encerrou o terceiro módulo do Curso de Especialização em Direito Agrário, realizado com a parceria da Articulação das Pastorais do Campo (APC) e a Universidade Federal de Goiás (UFG). Entre os dias 11 a 25 de setembro, 40 alunos que integram as pastorais do campo e organismos da igreja católica, estiveram reunidos no Centro de Formação Vicente Cañas, em Luziânia (GO). Foram quinze dias de imersão no conhecimento do Direito Agrário, um intercâmbio da academia e saberes dos povos do campo, das florestas e das águas.

Nesta edição, o curso modular apresenta uma turma bastante plural que reúne quatro regiões do país, onde os conflitos por terra e violações socioambientais ganharam destaque nos jornais nos últimos meses. Na região Centro-Oeste, comunidades indígenas sofreram ataques e, em menos de uma semana, dois jovens indígenas foram assassinados. Na região Sudeste o fogo provocou prejuízos irreparáveis. Na região Nordeste, enquanto o governo federal firmava direitos para algumas comunidades tradicionais quilombolas, outras enfrentavam ordem de despejo em seus territórios. Já o Norte do país, que além de enfrenta as queimadas, sofre com estiagem das chuvas que secaram os rios. Fatos graves que impactam todo o país.

Mas o que esses fatos representam para os alunos do Curso de Especialização em Direito Agrário das pastorais do campo? Representa aprofundamento nos debates sobre a  proteção dos povos e a busca pela partilha equitativa da terra. Em entrevista, alunos desta terceira edição destacam  aspectos relacionado à violência, a proteção dos povos e o Bem Viver dos das comunidades e territórios tradicionais. A comunicação da Articulação das Pastorais do Campo (APC), entrevistou alunos da 3ª turma, que compartilharam suas experiências no curso, além de discutir os contextos de suas pastorais, comunidades e territórios.

Os jovens Dinah Rodrigues e Ítalo Kant são formados em Direito e atuam na Comissão Pastoral da Terra (CPT), em regiões diferentes. Dina mora na região Centro-Oeste e enfrenta diversas lutas, conflitos de terra e também conquistas.  Ítalo encontra-se na região Sudeste em que os danos socioambientais através da mineração impactam a vida de muitas comunidades e povos tradicionais.

 

Confira os destaques das entrevistas

 

“Nossos territórios em sua maioria, são terras públicas que não foram desmembradas do patrimônio da União”.

 

 

 

 

 

Os instrumentos jurídicos como ferramenta de luta

Para Dinah da Silva Rodrigues, da Comissão Pastoral da Terra (CPT-TO), o curso tem colocado elementos de reflexão na luta dos camponeses pelo acesso e defesa de direitos da região em que vive. Ela pontua a desconstrução dos instrumentos do Direito Agrário em favor do agronegócio. A legislação que seria ferramenta legal para acessar o uso da terra para camponeses, no contexto histórico do país, proporciona conflitos e devastação ambiental. Neta de camponeses, Dina pertence a uma região do país que registrou mais de 80 conflitos em 2023.

Comunicação APC – Dinah, nestes módulos do curso, qual é sua reflexão sobre o acesso à justiça para o povo camponês, considerando o nosso contexto atual?

Me chama atenção a desconstrução do Direito Agrário ao longo do tempo. Observa-se as transformações do direito agrário em o direito do agronegócio. Instrumentos que eram utilizados em defesa dos povos e territórios são utilizados para garantir direitos ao capital. Utilizam instrumentos para a regularização fundiária e, assim, conseguem títulos de maneira fraudulenta, utilizando subterfúgios jurídicos para obter a titulação de territórios, mesmo sem exercer a posse direta.

 

Comunicação APC – Considerando as inúmeras lutas nas comunidades e territórios, qual o maior enfrentamento nesta conjuntura?

Os nossos territórios em sua maioria, são terras públicas que não foram desmembradas do patrimônio da União. Embora não se diga que não há dicotomias na Constituição, nós temos dois direitos fundamentais em disputa: o direito à propriedade privada e o direito à moradia. Atualmente, o nosso maior enfrentamento está sendo legitimar essa posse, reconhecer esse direito constitucional à moradia, reconhecer a constitucionalidade da reforma agrária frente a essa reivindicação da propriedade privada. Os grileiros apresentam títulos e dizem que o lugar pertence a eles, sem nunca ter sido deles.

O judiciário deve reconhecer que a propriedade privada e o direito à moradia estão na Constituição. Se existe uma disputa entre dois direitos, ele tem que procurar quem de fato exerce o direito naquela comunidade ou território. Precisamos apontar para esse judiciário, que é majoritariamente branco e masculino, que essas comunidades são, em sua maioria, formadas por pessoas que possuem ancestralidade e todo um contexto histórico.

Comunicação APC – Como você se sente neste espaço de aprendizagem e de que forma o curso contribui nas comunidades e territórios?

Estar neste espaço e ser neta de um homem negro assentado, que também lutou pelo seu território, me leva acreditar  que essa luta, é uma forma de honrar a minha ancestralidade. Estar aqui é lutar pelo Bem Viver dos povos, é honrar o que eu sou.

Acho que a maior contribuição desse aprofundamento aqui no curso, é potencializar os nossos argumentos jurídicos. Quanto mais aprofundar a instrumentalização do direito, melhor será a defesa na luta pelo acesso à terra. Esse conhecimento e saberes são nossas armas jurídicas para utilizar nessa luta, que é uma guerra. São eles contra as nossas comunidades. E dentro dessa circunstância, a gente tem que ter instrumentos viáveis. Dentro da legalidade, são justamente esses instrumentos jurídicos que vão nos possibilitar essas vitórias, nas batalhas que enfrentamos lá na base.

 

 

“O que estamos adquirindo aqui vai fortalecer nossos territórios e comunidades e as nossas estratégias jurídicas”

 

 

 

 

 

Direito Agrário para além da  perspectiva da luta por reforma agrária.

Ítalo Kant, da Comissão Pastoral da Terra (CPT-MG) , vivencia as questões de conflitos agrários, mas no contexto de enfrentamento à mineração. Há décadas que os povos de Minas Gerais vivenciam lutas acirradas com os grandes empreendimentos. O estado é fatiado pelas mineradoras e desde 2007 sofre com os crimes ambientais, o último ocorrido em 2019 em Mariana. Crimes ambientais que muito pouco foi feito no processo de reparação para as famílias de pequenos agricultores, pescadores e comunidades tradicionais.

Para Ítalo, o Direito Agrário precisa ser observado, estudado para além da  perspectiva da luta por reforma agrária. Ele compreende que o direito agrário é abrangente, a partir das realidades dos territórios e perpassa pelos demais direitos que são fundamentais para  a dignidade humana.

 

Comunicação APC – Quais são suas perspectivas a partir destes conhecimentos adquiridos até o momento e de que forma esse aprendizado respalda nas comunidades e pastorais?

Estarmos aqui nesse espaço de aprendizado é uma oportunidade enorme. Temos várias pastorais que trabalham com temáticas diversas. Isso nos proporciona um olhar para além de nossas experiências. Quando abordamos a temática da regularização fundiária, os companheiros do Cimi, por exemplo, nos apresentam a questão das terras indígenas. A CPT aponta as questões dos assentamentos, a CPP coloca luz sobre as lutas das comunidades pesqueiras. São óticas diferentes sobre uma mesma situação. Fazer essa especialização é um espaço riquíssimo de conhecimentos e de experiências que nos empodera.

É importante frisar que estas pastorais desta articulação, possuem mais de 40, 50 anos de caminhada e são trajetórias históricas de luta. O que estamos adquirindo aqui vai fortalecer nossos territórios e comunidades e as nossas estratégias jurídicas. O formato do curso nos permite conhecer  outras  realidades, biomas diferentes, outros contextos de violência e podemos nos articular melhor quanto pastorais, organismos e comunidades.

 

Comunicação APC – O formato do curso, o espaço físico  onde é realizado, que não é acadêmico e que permite a faculdade vir até os alunos, são fundamentais neste processo. Qual sua análise da construção deste caminho entre as pastorais e a faculdade?

Me sinto extremamente feliz por estar nesse espaço da chácara do Cimi, onde nos sentimos acolhidos. É um lugar repleto de simbolismo, espaço apropriado para aprofundar nosso conhecimento. Por ser um espaço fora da academia, nos possibilita  desenvolver o assunto sem formalidades técnicas. Considero fundamental a academia vir até nós neste processo inverso, especialmente no contexto das pastorais do campo, que é significativo para ambas as partes. O conhecimento  científico não pode ser construído apenas dentro da academia, necessita da troca de experiências.

Estamos felizes com a parceria da Universidade Federal de Goiás (UFG), que possibilita essa construção que é o compromisso público das universidades com a sociedade. Quantos jovens dos territórios onde atuamos, trabalhamos, tem o sonho em cursar uma universidade? Quantos deles gostariam tem de fazer  um mestrado, um doutorado ou uma especialização? Este acesso ao conhecimento do Direito Agrário nos possibilita fortalecer a luta, que outros dos nossos tenha acesso a faculdade. Nos possibilita a luta pelo direito de acesso à terra e território e fortalece o conhecimento científico da Universidade Pública. Portanto, todos nós ganhamos com este curso.

 

Comunicação APC – Como você avalia a iniciativa destas pastorais e organismos que se juntam nesta articulação para promover e avançar no conhecimento neste curso de especialização?

É uma iniciativa espetacular, não se faz a luta sozinho. Somos pastorais irmãs, temos que estar juntos/as, de braços dados. Essa unidade demonstra a importância de estarmos  sempre alinhados na luta. Quem ganha mais com essa articulação são as comunidades e territórios na busca de acesso aos seus direitos. Esperamos que essa iniciativa não fique apenas na especialização, que venham os espaços para o mestrado, possivelmente um doutorado e continuarmos com esse processo de formação. Essa turma não é formada por advogados e advogadas, mas também com o corpo técnico, as  lideranças da base. E quem sabe um dia nós tenhamos um ministro, ou ministra da Suprema Corte, um desembargador, um ministro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), saindo justamente desse espaço, deste nosso chão de luta. Precisamos popularizar o nosso sistema judiciário.

 

Mais um módulo

A terceira turma terá mais um módulo agendado para o primeiro semestre de 2025, encaminhamentos para a produção de conclusão do curso. A Especialização em Direito Agrário é organizado pela Articulação das Pastorais do Campo que integra a Comissão da Pastoral da Terra (CPT), Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Conselho Pastoral de Pescadores (CPP), Serviço Pastoral do Migrante (SPM), Pastoral da Juventude Rural e Cáritas Brasileira.

O curso é realizado em parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG), em convênio com a Faculdade de Direito e com o Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário (PPGDA) da UFG. O curso tem objetivo de capacitar agentes das pastorais do campo na defesa de seus direitos, em especial os povos e comunidades tradicionais.

 

Foto: Pastoral da Juventude Rural (PJR)

*Texto publicado originalmente no Blog da APC/Povos e Comunidades Tradicionais