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As teses periféricas pendentes de análise pelo STF depois da inconstitucionalidade do marco temporal

Nesta quarta-feira (27), a Suprema Corte retoma a discussão de repercussão geral sobre direitos territoriais indígenas, para definir sua interpretação final sobre o tema

 

Por Polama Gomes, Nicolas Nascimento e Rafael Modesto dos Santos, da Assessória Jurídica do Cimi

 

Com a votação concluída no dia 21 de setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) afastou a tese do marco temporal no julgamento do Tema 1031, referente à definição do Estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das terras indígenas. Prevaleceu, portanto, a teoria do indigenato, como por bem foi aprovado na Constituinte.

Contudo, a Suprema Corte ainda tem pendências a serem debatidas para arremate, fechamento e fixação de uma tese convergente – ao menos pela maioria.

Abaixo levantaremos as principais questões a serem enfrentadas pelos ministros nesta quarta-feira (27), quando a expectativa é que, depois de quatro anos de mobilização intensa dos povos indígenas em todo o Brasil, o julgamento seja concluído.

Entre as teses possíveis, estão: indenização a proprietários de boa-fé; nulidade de títulos e dos seus efeitos jurídicos; direitos fundamentais e garantias individuais (cláusulas pétreas); fase do processo de demarcação que permite a imissão na posse à comunidade indígena; limitação do valor da indenização; mineração; e redimensionamento de terras indígenas já demarcadas.

Da indenização e da natureza constitucional possível para agricultores de boa-fé

A tese que valida posses, ocupações, domínios, negócios jurídicos e a coisa julgada sobre terras indígenas não tem nenhum respaldo, seja no texto constitucional (art. 231, §6º), seja na jurisprudência desta Corte (vide ACO 312, ACO 362 e ACO 366) – e, muito menos, foi a vontade do Constituinte de 1988. Isso porque essa proposta aparece em pelo menos três votos.

Ela aparece no voto do ministro Alexandre de Moraes, que acrescenta ainda que a indenização tem que ser prévia, criando graves obstáculos à demarcação. Contudo, o artigo 231, no seu parágrafo sexto, impede esse tipo de validação quando firma que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo”.

Esse entendimento é reafirmado no Texto Maior desde a Emenda Constitucional n° 1 de 1969, no art. 198, §1. O STF consolidou esse entendimento em um conjunto de julgados. Um dos mais importantes é a decisão tomada na ACO 312/BA. Vejamos:

“Por unanimidade, o Tribunal rejeitou a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido. Em seguida, o Tribunal, por maioria, julgou parcialmente procedente a ação para declarar a nulidade de todos os títulos de propriedade cujas respectivas glebas estejam localizadas dentro da área da Reserva Indígena […]”

Na hipótese de permitir a reparação aos particulares de boa-fé, o mesmo efeito prático é alcançado com a indenização do art. 37, §6º, sem ser necessário validar o que a Carta de 1988 e a jurisprudência de longa data expressamente definiram como inválidos e sem efeitos jurídicos – desde que seja operacionalizado processo indenizatório apartado do processo de demarcação. Essa possibilidade, da indenização não pelos títulos, mas pelo evento danoso decorrente da ação indevida do Estado, foi apresentada em votos como o dos ministros Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso.

Do redimensionamento de terra indígena já demarcada

Neste ponto, se discute se é possível existir prevalência da Lei 9.784/99, que no seu artigo 54 prescreve o prozo decadencial de cinco anos para revisão atos da administração pública, sobre a força normativa do art. 231, § 4°, da Constituição Federal, que firma a imprescritibilidade dos direitos dos povos indígenas ao seu território.

Cabe destacar que há uma hierarquia da Constituição sobre as demais normas infraconstitucionais. Então, não seria possível, em nenhuma hipótese, o direito processual administrativo se sobrepor sobre direito material e constitucional dos indígenas à terra. Direito esse que é imprescritível, vale repisar.

Nessa linha, a prescrição ou decadência quinquenal do processo administrativo não pode afetar Norma Fundamental, ainda mais por se tratar de direitos e garantias individuais, operacionalizados pelas comunidades indígenas de forma coletiva.

Desta maneira, não cabe nenhuma limitação à revisão dos limites de demarcações feitas abaixo da real área tradicionalmente ocupada pelos povos originários – e nem é correto denominar esse procedimento de “ampliação” de terras indígenas, visto que, na maioria dos casos, se trata da correção de um equívoco praticado pelo próprio Estado.

“Os indígenas são contra a mineração em suas terras, porque o impacto é extremamente nocivo, a exemplo de disseminação de doenças, alcoolismo, além de uma série de outras violências decorrentes da exploração dessas terras e do drástico impacto ambiental, social e cultural nos territórios e comunidades.

 

Indígenas acompanham votação do lado de fora do STF, em 30 de agosto de 2023. Foto: Hellen Loures/Cimi

Da impossibilidade de mineração em terras indígenas. Objeto estranho à lide

Na Constituinte, o acordo era de que não mexeriam nas terras indígenas antes de esgotadas todas as jazidas de exploração mineral em outras áreas. Significa que não há omissão legislativa a ensejar essa tese, até porque o que é mencionado como omissão legislativa é, simplesmente, o cumprimento de um acordo constituinte.

Importante ressaltar que as violações de direitos que atualmente assolam as comunidades indígenas são decorrentes não da omissão legislativa para exploração de recursos naturais, mas da ausência de demarcação, fiscalização e proteção territorial.

Ademais, os indígenas são contra a mineração em suas terras, porque o impacto é extremamente nocivo, a exemplo de disseminação de doenças, alcoolismo, além de uma série de outras violências decorrentes da exploração dessas terras e do drástico impacto ambiental, social e cultural nos territórios e comunidades.

Também, não há margem processual para a discussão nos autos do RE 1.017.365 (Tema 1.031). O objeto dos autos não aceita tamanha elasticidade hermenêutica.

Nesse sentido, nos termos do art. 231, § 3º, combinado com o seu § 2º, somente seria possível a exploração mineral e outros recursos naturais em terras originárias se ela fosse feita exclusivamente pelos indígenas, mas nunca por terceiros.

Embora pareça redundante ter de afirmar taxativamente que os direitos fundamentais previstos nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal são cláusulas pétreas, o mesmo se faz necessário, tendo em vista a dificuldade do legislador ordinário em compreender que não se alteram direitos e garantias individuais por Lei ou mesmo por Emenda à Constituição

Indígenas acompanham votação do lado de fora do STF, em 30 de agosto de 2023. Foto: Hellen Loures/Cimi

Dos direitos e garantias fundamentais dos indígenas. Cláusulas Pétreas.

Em seu voto, proferido no dia 9 de setembro de 2021, o ministro relator Edson Fachin atendeu ao pedido do povo Xokleng e firmou sobre a imutabilidade do artigo 231 da Constituição Federal. O relator afirma que, “[e]m primeiro lugar, incide sobre o disposto no artigo 231 do texto constitucional a previsão do artigo 60, §4º da Carta Magna, consistindo, pois, cláusula pétrea à atuação do constituinte reformador (…)”.

Afirma ainda o ministro que, em segundo lugar, os direitos indígenas são direitos fundamentais e estão imunes às decisões legislativas de ocasião. Por fim, por se tratar de direito fundamental, aplica-se ao caso o princípio da vedação do retrocesso e a proibição da prestação deficiente, já que as terras são ligadas à própria existência desses povos.

Assim concluiu o povo Xokleng, no item 12 de suas alegações finais, entregues ao Supremo no ano de 2020: “os artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988 consistem em cláusulas pétreas, inatingíveis pelo poder constituinte reformador, sendo vedado, ainda, o retrocesso hermenêutico”.

Para o professor Daniel Sarmento, pode-se “invocar ainda outra razão adicional para considerar o direito as terras indígenas como cláusula pétrea. É que a interpretação constitucional deve dialogar com o Direito Internacional, especialmente no campo dos Direitos Humanos”.

Embora pareça redundante ter de afirmar taxativamente que os direitos fundamentais previstos nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal são cláusulas pétreas, o mesmo se faz necessário, tendo em vista a dificuldade do legislador ordinário em compreender que não se alteram direitos e garantias individuais por Lei ou mesmo por Emenda à Constituição, haja vista as ameaças desprovidas de constitucionalidade advindas de bancadas do legislativo federal, a exemplo do Projeto de Lei (PL) 2903/2023 e da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 48/2023.

Posse aos indígenas da publicação da portaria declaratória. Inexistência de direito de retenção. Impossibilidade de indenização em casos já pacificados

O povo Xokleng, em tese apresentada nas suas alegações finais, requereu da Suprema Corte que a posse, sem nenhum direito de retenção pelos não-indígenas, pudesse se dar a partir da aprovação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) pela presidência do órgão indigenista.

Contudo, o ministro Cristiano Zanin inaugura uma proposta que foi seguida por pelo menos Dias Toffoli e Gilmar Mendes, nos seguintes moldes: “VII – Descabe indenização em casos já pacificados, decorrentes de terras indígenas já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, ressalvados os casos judicializados e em andamento”.

Portanto, a publicação da Portaria Declaratória é suficiente, como limitação fática, para duas situações: 1) pacificar as relações de posse e compreender que não cabe indenização, sequer por evento danoso, nos casos em que superada essa fase processual; e 2) a publicação da Portaria Declaratória é o momento procedimental com aptidão de apossar os indígenas no território.

Os grandes proprietários também podem ser indenizados, mas em valor equivalente aos pequenos agricultores, não sendo justo levar em consideração o tamanho da propriedade (valor da terra nua) para a aferição do quantum indenizatório, mas sim o dano sofrido pela titulação irregular feita pelo estado federado ou pela União

Da limitação do tamanho da propriedade para indenização

Vários dos votos apresentados seguem o entendimento de que deve haver uma espécie de indenização aos agricultores que ocupam terras indígenas de boa-fé. Ou seja, pequenos agricultores, muitas vezes pobres, que tiveram expectativa de direito criada pelo Estado federado ou pela União, quando receberam títulos de propriedade sobre áreas de ocupação tradicional indígena. Como os títulos são nulos e não produzem efeito nenhum, não possuem direito de receber pela terra nua.

Daí exsurgem duas possibilidades: 1) reassentamento por enquadramento da família impactada como clientela da reforma agrária; 2) possibilidade de indenização por ato ilícito ou evento danoso, por força da responsabilidade objetiva do Estado ou da União por terem criado expectativa de direitos em terceiros de boa-fé.

Vejamos como está redigido o art. 148-A, da Constituição do estado de Santa Catarina – um dos poucos estados que regulam esse direito –, que já prevê a possibilidade das indenizações:

Art. 148-A. O Estado poderá promover, na forma da lei e por meio de convênios com outros entes federativos, o reassentamento ou a indenização dos pequenos agricultores que, de boa fé, estejam ocupando terras destinadas por meio de processo demarcatório, aos povos indígenas.

No art. 4º do Decreto 1775/96, temos a seguinte previsão:

Art. 4° Verificada a presença de ocupantes não índios na área sob demarcação, o órgão fundiário federal dará prioridade ao respectivo reassentamento, segundo o levantamento efetuado pelo grupo técnico, observada a legislação pertinente.

Os grandes proprietários também podem ser indenizados, mas em valor equivalente aos pequenos agricultores, não sendo justo levar em consideração o tamanho da propriedade (valor da terra nua) para a aferição do quantum indenizatório, mas sim o dano sofrido pela titulação irregular feita pelo estado federado ou pela União.

Conclusão

O Supremo, no dia 27 de setembro, tem a difícil tarefa de pacificar esses diversos temas. Contudo, deve prevalecer a vontade do Constituinte e o texto do artigo 231 da Constituição na fixação da tese. Por isso mesmo, mantemos a confiança de que o STF aplicará o melhor direito, sem retroceder ou reduzir os direitos constitucionais indígenas.