Paulo Maldos
Por ocasião da Assembleia do CAIS
Iniciamos esta análise resgatando o processo que vivemos em nossa história recente. Para tanto, lembramos da luta contra a ditadura civil-militar de 1964 a 1985 e do papel protagonista que nela tiveram os movimentos sociais. De fato, diversos movimentos sociais de âmbito nacional que conhecemos hoje nasceram e se desenvolveram durante a ditadura e foram decisivos para a sua derrota. Entre estes, é importante apontar o papel desempenhado pelos movimentos sindicais, particularmente da região industrial de São Paulo e do ABC paulista, que contestaram e desgastaram o poder centralizado na época e abriram caminho para a redemocratização do país.
Havia naquele período uma diversidade muito grande de movimentos e organizações sociais, urbanas e rurais, com diversas origens e orientações políticas, com grande capilaridade em todo o território nacional e com uma multiplicidade de reivindicações e propostas. Todo esse conjunto de movimentos e organizações populares participou ativamente do processo constituinte, entre 1987 e 1988, tendo sido responsável pela proposição de muitos artigos que vieram a compor a Constituição Federal de 1988. Devido a esse protagonismo, nossa Constituição não apenas adquiriu sua característica central de reconhecimento de direitos sociais como também se constituiu como um patamar para a conquista permanente de direitos, através da participação social na construção de políticas públicas.
A existência desta Constituição e forte mobilização social foi o que permitiu que a sociedade brasileira vivesse os anos de hegemonia do neoliberalismo no mundo e no Brasil, com o governo FHC, sem a devastação dos direitos sociais, marca essencial desta ideologia e proposta de gestão governamental. Embora o governo tentasse impor sua agenda neoliberal, a Constituição lhe impunha limites legais e a mobilização social lhe criava limites políticos.
Foram estes acúmulos sociais e políticos que nos permitiram chegar aos governos Lula e Dilma. Durante os dois mandatos do presidente Lula, prevaleceu uma concepção de composição de classes, na qual todas deveriam ter ganhos econômicos, embora as elites sempre ganhassem mais. Um ambiente internacional favorável contribuiu com o sucesso desta estratégia, caracterizada também pela construção de políticas anticíclicas e a consequente inclusão de milhões de famílias antes excluídas econômica e socialmente. Novas políticas públicas inclusivas, em diversas áreas, permitiram também a ascensão social de cerca de 40 milhões de pessoas, das classes mais baixas para o nível econômico e de consumo das classes médias.
Os dois mandatos da presidente Dilma tiveram características distintas. Embora a presidente tivesse mantido as políticas de inclusão social e de participação social do presidente Lula, o ambiente internacional havia se deteriorado enormemente, o que impedia que as mesmas políticas, nas quais todas as classes ganhavam, fossem mantidas. A presidente Dilma não aceitava reduzir direitos sociais e passou a sofrer uma forte pressão no sentido de adotar políticas recessivas e na contramão dos processos de inclusão social que vinham desde a Constituição de 1988. Não por acaso, os editoriais dos grandes jornais passaram a usar o bordão segundo o qual “a Constituição Federal não cabe no orçamento”, para questionar a política econômica e a existência de políticas públicas inclusivas.
A eleição da presidente Dilma para um segundo mandato fez transbordar os ressentimentos e ódios de classe acumulados há anos. Esta vitória não foi aceita pelas elites, que decidiram que a presidente não poderia realizar seu governo, legitimamente eleito pelas urnas. A presidente, no início de seu novo mandato, ainda tentou fazer acenos com as políticas de seus adversários, adotando algumas parcialmente, mas o veto era definitivo e as elites passaram a colocar em prática a inviabilização do governo e um golpe parlamentar através de um impeachment sem crime de responsabilidade.
O golpe foi realizado no Congresso Nacional por uma ampla aliança que articulava setores do legislativo, do judiciário, do próprio executivo, além do Ministério Público Federal e da mídia comercial. Tais setores criaram uma agenda profundamente antipopular, que remete à destruição de direitos sociais existentes desde os anos 30 ou 40 e se constitui como um verdadeiro lança-chamas sobre as páginas da Constituição Federal de 1988.
Aos golpistas, às elites que articularam e colocaram em prática a queda do governo eleito, não importa nenhuma racionalidade, legalidade ou legitimidade: elas deram o golpe simplesmente porque queriam e tinham o poder real, ou força econômica e controle de classe sobre as instituições, para dar o golpe. Essas elites buscam agora colocar em marcha, com celeridade, a estratégia de destruição diária de direitos econômicos, sociais, culturais, territoriais, ambientais etc
Como sabem que sua agenda é fortemente regressiva e profundamente antipopular, os golpistas buscam também, sempre que vislumbram uma oportunidade, aliciar a força militar e colocar em marcha práticas da ditadura para se impor, reprimir e ameaçar os movimentos sociais. As Forças Armadas continuam sendo hoje, para as elites, o que sempre foram do seu ponto de vista: a última linha de defesa de seus privilégios de classe, ante os avanços das lutas populares e democráticas.
O golpe não evoluiu, no entanto, sem reações da sociedade civil organizada. Tanto os movimentos sociais e sindicais, estudantes, mulheres, comunidade LGBT, movimentos do campo, intelectuais e artistas, todos se posicionaram nitidamente contra o golpe e o denunciaram como farsa e assalto ao poder. Os espaços de participação social conquistados nos últimos anos, conselhos de direitos e comitês, nacionais e estaduais, foram também palco de debates e resistência aos golpistas.
As articulações para a resistência foram inúmeras e avançaram até a construção de duas grandes frentes políticas, a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo, que representam, cada uma delas, dezenas de movimentos sociais de âmbito nacional. Neste esforço de mobilização social houve também a busca de novas ferramentas de luta, como ocupações de ministérios e de escolas, e o uso de novas maneiras de sustentação, como o crowdfunding ou a “vaquinha por internet”, onde milhares de pequenos doadores bancam atividades políticas propostas em plataformas virtuais. Ficaram conhecidas as campanhas de arrecadação do Levante Popular da Juventude, para levar seus militantes a manifestações em Brasília e para a realização de escrachos em diversas regiões do país e a campanha de amigas da presidente Dilma para que ela pudesse viajar pelo país para fazer a defesa de seu governo, quando ainda afastada.
Houve, portanto, uma forte disputa das ruas, entre aqueles que defendiam a derrubada da presidente eleita e aqueles que defendiam a preservação da democracia. Este embate se manifestou em número e abrangência das manifestações e de manifestantes, sendo que aqueles que defendiam o golpe eram chamados às ruas pelos grandes meios de comunicação e apoiados financeiramente por empresários, ao passo que os que resistiam contavam apenas com seus próprios recursos e com a criatividade da militância.
As reações populares ao golpe, mesmo tendo superado patamares de mobilização social até então conhecidos em números e extensão, não contavam, não importavam: as elites deram o golpe porque queriam e porque podiam, como classe social que controla o Estado e tem o conjunto da mídia a seu favor.
Quais lições tiramos de todo esse processo de democratização do Brasil das últimas décadas e que agora está ameaçado de retrocesso? Quais desafios permanecem para a sociedade civil brasileira, para os movimentos sociais, para as entidades de classe e centros de formação política, para aqueles e aquelas que lutam pela democracia, que defendem a Constituição Federal, o avanço nas conquistas de direitos sociais e a construção de uma sociedade mais justa e solidária?
A principal lição que tiramos é a de que a forte inclusão social que ocorreu nos anos Lula e Dilma foi vivida sem um debate esclarecedor e sem um processo de formação política junto aos milhões de beneficiários das políticas públicas. Isso propiciou que estes milhões de indivíduos da classe trabalhadora que ascenderam socialmente avaliassem seu processo de ascensão apenas como mérito pessoal, não como resultado de decisões políticas do governo, ou seja, leram suas trajetórias pessoais com as lentes da ideologia dominante.
Outra lição é a de que, na colaboração de classes construída naquele período os valores e práticas políticas da classe dominante deram o tom; o polo progressista, que deveria conduzir o processo com os valores da transformação social, se adaptou aos valores tradicionais e assumiu muitas de suas práticas, rebaixando o nível político conquistado nas eleições e através dos programas de governo, deixando-se levar pelo modo das oligarquias regionais fazerem política. As denúncias comprovadas de desvio de recursos públicos envolvendo lideranças de esquerda são a prova de como o campo popular se deixou envolver com práticas que antes combatia.
Durante os anos em que os setores democráticos assumiram o governo federal houve desmobilização dos processos de formação de quadros para o Estado e de formação de lideranças para a luta social. Os processos de formação política, que foram estratégicos para o avanço das lutas populares e para a conquista de direitos sociais durante as últimas décadas, foram abandonados, deixando-se de criar novos quadros políticos, com novas leituras e propostas, para as lutas e para os postos de governo.
Neste abandono dos processos formativos e educativos, deixou-se de lado também o trabalho de base, junto às comunidades rurais e urbanas, nos bairros e nas fábricas, nos sindicatos e nos grupos familiares, nas escolas e nos centros comunitários, lugares de encontro e reprodução cotidiana da visão popular sobre o país e sobre os processos em curso; lugares onde o aprendizado das lideranças também ocorre, ao se confrontar com a sensibilidade e com o modo do povo enxergar a sua vida do dia a dia.
Por fim, mas não menos importante, tivemos a ausência de um projeto claro para o país, que pudesse ser conhecido, debatido e, principalmente, defendido pelas classes sociais que estavam sendo beneficiadas pelas macro-politicas e pelas políticas públicas inclusivas. Esta ausência de um projeto popular conhecido e assumido por todos propiciou que o golpe fosse perpetrado sem que a maioria da população se desse conta do que estava verdadeiramente em jogo, e acabasse assimilando a versão de um “impeachment legal devido a pedaladas fiscais”.
A maioria da população, inerte diante dos meios de comunicação e sem espaços alternativos de informação e debate, ficou sem condições de reação ao que de fato ocorria: uma luta de classes desencadeada de cima para baixo, um golpe de Estado para impor retrocessos profundos aos direitos sociais e à soberania nacional, tendo como marcas centrais a destruição da Constituição Federal de 1988 e a retirada dos pobres do orçamento público.
Quais seriam os principais desafios no contexto pós-golpe, para aqueles e aquelas que defendem a democracia e a continuidade de avanços no rumo da construção de uma sociedade mais justa e solidária?
Em primeiro lugar, a volta ao trabalho de base, para a retomada de processos formativos e organizativos da população trabalhadora no seu cotidiano e nos seus locais de vida e trabalho e para também se aprender a respeito das suas dúvidas, necessidades e propostas.
Em segundo lugar, a retomada dos processos de formação de lideranças populares, para o fortalecimento, enraizamento e renovação dos movimentos sociais, assim como de suas estratégias e formas de atuação.
Em terceiro lugar, construir cada vez mais uma vasta rede de resistência, enraizada em todo o país, que articule e busque a convergência de movimentos sociais rurais e urbanos e entidades, preservando suas diferenças políticas e suas agendas específicas, mas que constitua um forte poder de mobilização popular e de defesa dos direitos sociais, da Constituição Federal e da soberania nacional.
Em quarto lugar, voltar a debater em âmbito local, municipal, estadual, regional e nacional, um projeto político para o país, envolvendo toda a sociedade brasileira e toda a militância política, com a sua diversidade política e cultural – discutir valores e propostas em torno de um projeto de nação soberana, justa e igualitária.
O grande desafio que, enfim, se coloca à nossa frente é o de trilhar o caminho de retomada da democracia, aprendendo com os erros cometidos e construindo desde já uma nova sociedade, a partir de novos valores e de novas práticas.
Brasília, fevereiro de 2017.
CAIS | Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativas Sociais