No último dia 22 de setembro, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido) abriu a Assembleia Geral da ONU. No discurso, ele afirmou que o Brasil é alvo de campanha de desinformação sobre as queimadas, reafirmou que agiu para enfrentar o combate ao coronavírus com o auxílio emergencial. Com indignação, 95 organizações divulgaram uma carta pública na qual lembram “a história que a história não conta”.
Leia a carta na íntegra:
Diante de mentiras que ninguém acredita, é preciso reafirmar o óbvio:
As queimadas são culpa do agronegócio!
Bolsonaro mente. Na ONU, para o mundo ver, ridiculariza o Brasil. Inventa uma realidade paralela, cínica, fingida. Os grileiros e desmatadores vibram com a farsa: podem continuar incendiando o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia com a certeza de que o governo não fará nada para impedir. É um crime de lesa humanidade.
Enquanto a sociedade brasileira se indigna e lamenta a devastação, precisamos rememorar e nos inspirar no espírito das lutas dos seringueiros com Chico Mendes realizando os empates amazônicos; da luta das quebradeiras de coco-babaçu com Dona Raimunda, Dona Dijé e até hoje em todo o Cerrado em defesa dos babaçuais; dos tantos heróis e heroínas dos povos indígenas, comunidades quilombolas, pantaneiras, geraizeiras, raizeiras, retireiras, ribeirinhas, assentadas de reforma agrária que, ao longo do tempo, têm defendido as florestas e matas nativas com seus próprios corpos.
É em honra deles e delas, a “história que a história não conta”, que os movimentos, organizações e pastorais sociais do campo; redes, articulações e campanhas; e redes e grupos de pesquisa brasileiros que assinam essa carta afirmam o compromisso com a memória, a verdade e a justiça. Não nos calamos diante de velhos estratagemas autoritários reeditados, que incitam o ódio e o racismo e sustentam farsas e crimes contra os direitos dos povos.
Neste sentido, nos cabe reverberar ao mundo que:
1) A culpa é do agro: as queimadas são estratégias para consolidar a grilagem
Os grileiros se aproveitam da leniência do governo para incendiar o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia e, assim, destruir a vegetação das terras públicas, em sua maioria devolutas e tradicionalmente ocupadas, buscando consolidar processos de grilagem. Contam, desde o princípio, com a perspectiva de posterior regularização fundiária sobre as terras griladas, ou mesmo com a conivência dos Cartórios de Imóveis, e com a anistia do desmatamento ilegal, mesmo sobre áreas de reserva legal obrigatória de imóveis rurais já regularizados. É um ciclo histórico de fogo, desmatamento, grilagem e anistia, baseado na certeza da impunidade, e aprofundado por um governo que desmonta os órgãos de fiscalização e monitoramento e arma as classes proprietárias rurais para avançar com a pistolagem e conflitos no campo.
O Estado brasileiro tem buscado institucionalizar a grilagem de terras através de diferentes ações. As medidas de flexibilização da regularização fundiária e ambiental em múltiplas escalas adotadas na última década, a ausência de fiscalização nos registros de propriedades rurais nos cartórios de imóveis, bem como a atuação conivente de diversos setores do Sistema de Justiça com a apropriação ilegal de territórios tradicionais promovem diretamente o aumento do desmatamento, e impactam os modos de vida dos povos do Pantanal, do Cerrado e da Amazônia. Em especial, o projeto de lei 2633, o “PL da grilagem”, em tramitação, sinaliza aos grileiros a perspectiva de futura anistia.
Ainda que as fronteiras entre o desmatamento legal e ilegal sejam tênues, justamente pelo ciclo histórico de anistia e regularização da ilegalidade, estudos apontam que 62% do desmatamento ilegal estrito senso no Cerrado e na Amazônia (em termos de hectares desmatados), entre 2008 e 2019, esteve concentrado em 2% das fazendas dessas regiões. O Pantanal é emblemático dessa dinâmica: a maior parte da destruição do Pantanal mato-grossense por incêndios (480 mil ha) neste ano ocorreu no período proibitivo do fogo no estado, iniciado em 1º de julho de 2020. Cerca de 67,5% do total (324 mil ha) foram incendiados a partir de nove focos iniciais, cinco dos quais localizados em fazendas inscritas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) como imóveis rurais privados. Os proprietários dessas fazendas comercializam gado para os grupos Ammagi e Bom Futuro que, por sua vez, fornecem gado para conglomerados como JBS, Marfrig e Minerva. Estes focos foram a origem do fogo que queimou aproximadamente 117 mil hectares no Pantanal (área equivalente à cidade do Rio de Janeiro). Outros três pontos de incêndio iniciaram em áreas não cadastradas e impactaram 148 mil hectares. A tríade grilagem-fogo-desmatamento é a marca registrada do governo Bolsonaro.
As áreas desmatadas são postas para a produção de commodities agrícolas – e não alimentos – destinadas, na sua maioria, para a exportação, carregando consigo o sangue dos povos e a devastação dos territórios. Enquanto o governo sacrifica as matas e florestas para exportar commodities, a segurança alimentar se deteriorou no Brasil e regrediu a níveis inferiores a 2004, primeiro ano de medição pelo IBGE.
2) O governo Bolsonaro é cúmplice da devastação por ação e omissão
2020 tem se consolidado como um ano de recordes no Brasil, tanto de exportações do agronegócio, quanto de desmatamento. As queimadas no Pantanal neste ano são as maiores desde que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) começou a registar os números, em 1998, destruindo 15% da região. De janeiro a meados de agosto de 2020, 560 mil hectares do Pantanal mato-grossense foram queimados, 95% dos quais em área de vegetação nativa. Isso equivale a nove vezes o desmatamento total ocorrido no Pantanal nos últimos dois anos, uma escalada devastadora. Nos últimos 12 meses, a taxa de desmatamento na Amazônia aumentou 34%. Ainda, segundo dados do INPE, os anos de 2019 e 2020 (até setembro) foram de recordes na quantidade de focos de queimadas no Cerrado (50,3 e 43,6 mil), no Pantanal (5,9 e 16,9 mil) e na Amazônia (65,7 e 73,9 mil), totalizando, 141,6 mil focos em 2019 e 153,5 mil focos até 27 de setembro de 2020.
O que não podemos nos esquecer é que por trás de números, fotos de devastação e imagens de satélite com focos de incêndio, estão conflitos por terra e destruição da biodiversidade e de modos de vida indígenas e tradicionais.
O aumento do desmatamento e das queimadas é reflexo do desmonte e militarização de órgãos ambientais em conjunto com a flexibilização das políticas de controle do desmatamento. O Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) são alvos das constantes reestruturações da pasta ambiental, que ocorrem através da redução orçamentária e da nomeação de militares para ocuparem cargos estratégicos, o que resulta na falta de pessoal e de equipamentos no combate ao desmatamento.
O desmonte e a desqualificação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) pelo governo também validam o aumento da devastação ambiental. Desde julho de 2019, ao divulgar o aumento de 88% do desmatamento na Amazônia Legal em relação ao mesmo mês de 2018, o INPE tem sido alvo de ataques do governo Bolsonaro. Além do negacionismo em relação ao avanço do desmatamento, tais posicionamentos do governo são ofensivos e lesivos ao conhecimento científico, deslegitimando as pesquisas desenvolvidas no país.
As ações e omissões não são ocasionais e isoladas, mas convergem em um projeto de Brasil a serviço do agronegócio, em benefício da bancada ruralista no Congresso Nacional, dos latifundiários e dos grileiros, promovendo o desmatamento e o ataque aos direitos territoriais de povos indígenas e comunidades tradicionais.
3) O uso do fogo nos sistemas agrícolas tradicionais é um saber ancestral e muito diferente dos incêndios criminosos do agro
Nos diferentes ecossistemas de florestas, campos, áreas úmidas e savanas, há tradições de manejo por meio do uso do fogo para promover a fertilização da terra para novo plantio (como na roça de toco, coivara ou itinerante), para manejar pasto nativo para criação de gado e/ou para a rebrota de algumas espécies de uso extrativista. Este processo é parte da constituição da agrobiodiversidade ao longo do tempo, ou seja, o cultivo consciente da combinação de uma diversidade de espécies vegetais de interesse humano, seja para alimentação, criação animal, artesanato, arquitetura, medicina ou rituais.
Esse fogo manejado – seja no Cerrado, no Pantanal ou na Amazônia – nos sistemas tradicionais é realizado por meio de regras consuetudinárias que respeitam o tempo e o lugar certo (áreas pequenas e de uso rotativo) e a forma de fazer o fogo, garantindo que ele não se alastre. Os povos e comunidades querem garantir as matas de pé e, por isso, cuidam desse processo e estabelecem protocolos coletivos.
Os incêndios criminosos, ao contrário, têm por objetivo devastar para consolidar a grilagem. São feitos especialmente no tempo seco e a partir de vários focos, muitas vezes usando árvores e galhos em leiras em áreas preparadas para que o fogo se alastre. Os levantamentos sobre os focos de incêndio a partir de propriedades privadas no Pantanal demonstram essa dinâmica criminosa que o governo Bolsonaro quer acobertar, criminalizando os sistemas tradicionais!
4) Quando o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia queimam são os modos de vida de seus povos e comunidades que estão queimando
Os povos indígenas e comunidades quilombolas, tradicionais e assentadas de reforma agrária têm seus modos de vida entrelaçados com as matas, das quais dependem para ter água limpa e abundante, para ter ar puro, para se alimentar e gerar renda vendendo seus produtos nas feiras, para ter suas medicinas tradicionais, para manter suas tradições culturais e espirituais.
É por isso que quando o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia queimam são esses modos de vida que estão queimando, sua reprodução social fica comprometida, a base material da sua existência é usurpada.
O ar poluído pela fumaça do desmatamento que chega nas grandes cidades e as imagens aterradoras dos bichos morrendo devem nos indignar e mobilizar no sentido de lutar por transformações políticas. Mas quando vemos as imagens de devastação, não podemos jamais nos esquecer dos povos e comunidades que são os herdeiros de saberes tradicionais que guiam o manejo e a conservação das águas e da biodiversidade. Eles são os guardiões e defensores desses bens comuns!
5) Assegurar os Direitos territoriais de povos e comunidades do Pantanal, Cerrado e Amazônia é a melhor forma de conter o desmatamento
O governo Bolsonaro tem desmantelado instituições públicas como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), paralisando os processos de demarcação. E, junto com a bancada ruralista no Congresso Nacional, tem promovido legislações que favorecem a grilagem e a anistia aos desmatadores.
Os povos indígenas e comunidades quilombolas, tradicionais e assentadas de reforma agrária defendem as matas e florestas contra as ameaças e a devastação desses grileiros. É por isso que a melhor forma de conter o desmatamento é assegurar seus direitos territoriais, reconhecendo e demarcando suas terras tradicionalmente ocupadas e destinando terras à reforma agrária.
Se ainda há Pantanal, Cerrado e Amazônia em pé é porque esses povos estão com os pés em seus territórios, defendendo as matas, as águas, os bichos e a biodiversidade!
A eles: nossa gratidão!
Com eles, caminhamos em defesa de seus direitos territoriais, que é também a defesa de nossos bens comuns!
Brasil, 25 de setembro de 2020
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