No encerramento do Seminário Nacional A Água na Perspectiva do Bem Viver, realizado pelo Fórum Nacional de Mudanças Climáticas e Justiça Social (FMCJS) e Movimento Educação de Base (MEB) em Brasília (16 a 18/11/2017), setenta representantes de cinquenta movimentos e entidades sociais e populares aprovaram documentos importantes norteadores das ações do FMCJS em 2018, baseadas no seu lema, “Em Defesa da Vida”.
O evento abordou a luta dos atingidos pelos desastres climáticos e os prejuízos socioambientais causados por grandes empreendimentos, em especial o agro e o hidronegócio. Exemplos diversos destacaram experiências exitosas da coleta da água de chuva para beber e produzir, além do seu reuso no Semiárido, e a importância da relação inseparável entre a Amazônia e o Cerrado para abastecer o Brasil e o resto da América Latina.
As entidades do FMCJS aprovaram a carta do evento e uma Moção de Apoio a população de Correntina/BA, diante do conflito hidrico pela água no Cerrado oeste da Bahia. Os documentos estão reproduzidos abaixo.
A ÁGUA, MÃE DA VIDA, NÃO PODE SER PRIVATIZADA!
CARTA DOFÓRUM DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS
E JUSTIÇA SOCIAL E DO MOVIMENTO DE EDUCAÇÃO DE BASE
Nós, participantes do Seminário “A ÁGUA NA PERSPECTIVA DO BEM VIVER”, vindos de diversos movimentos sociais e populares de todos os biomas do Brasil, afirmamos que a água é um bem comum. Não pode ser privatizada! “O acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal” (Papa Francisco).
Inspirados pelos povos originários, de quem aprendemos a viver duravelmente em feliz harmonia com a Natureza, abraçamos o Bem Viver como modo de vida em que as condições de existência digna e o poder de tomar decisões são compartilhadas de forma equitativa e satisfatória para cada pessoa e toda a comunidade. O Bem Viver promove e protege as liberdades públicas e individuais exercidas de forma democrática, ética e respeitosa da diversidade humana e da natureza. Um jeito de conviver completamente diferente deste modo que nos é imposto pelos nossos opressores.
A água como bem comum promove a vida e o Bem Viver. A água como mercadoria concentra lucros e promove carência, doença e morte. As mudanças climáticas alteram o ciclo da água e contribuem para reduzir a sua disponibilidade. Temperaturas mais altas aceleram a evaporação e a evapotranspiração, tornando as secas mais severas. As tempestades também se tornam mais intensas e grandes enchentes ceifam vidas, devastam solos e plantações, e comprometem o abastecimento de água. É o caso das enchentes destruidoras na Serra dos Órgãos, RJ, no Rio Madeira (RO), em Itajaí, SC, o Furacão Matthew no Haiti e, o mais recente Furacão Maria em Porto Rico. A elevação do nível do mar, também associada ao aquecimento global desaloja comunidades litorâneas e compromete a qualidade do lençol freático nas zonas costeiras via intrusão salina. Sem uma radical mudança de curso, reservatórios secos, rios assoreados, poluídos e mortos, nascentes desmatadas e degradadas, e água subterrânea salinizada privarão até bilhões de pessoas do direito à água. Este quadro se agrava a cada décimo de grau de aumento da temperatura média da Terra.
Além dos fatores climáticos, atividades humanas típicas do “desenvolvimento” privatista e crescimentista (crescimento quantitativo, em vez de desenvolvimento qualitativo) utilizam em excesso, intoxicam e poluem as águas. A expansão monopólica dos bancos privados na financeirização e no controle de ativos das empresas, o agronegócio, a mineração, a indústria e a infraestrutura energética (hídrica, termo e nuclear), voltados para os lucros e não para o atendimento das necessidades humanas, consomem água intensivamente e geram contaminantes tóxicos e venenosos, causando a morte de habitats, o biocídio e o hidrocídio. É o caso do crime ambiental da Samarco/Vale/BHP na Bacia do Rio Doce, do colapso da Bacia do São Francisco e de afluentes do Amazonas, como o Xingu, com a usina de Belo Monte, o Tocantins (cuja perversa transposição já foi aprovada em lei), o Araguaia e os rios do Cerrado. É o caso da crescente contaminação do Aquífero Guarani e sua entrega ao capital internacional. É o caso da seca que já dura sete anos no Semiárido, bioma vitimado por crescente desertificação. Urbanização e turismo predatórios, especulação imobiliária, grande indústria e megaeventos afetam o ciclo das águas nas cidades, desperdiçam a água das chuvas com a impermeabilização do solo, transporte de esgotos e outros resíduos tóxicos. Megaprojetos limitam o acesso das populações à água, reduzem ou eliminam os territórios pesqueiros, privatizam, poluem os lençois freáticos e salinizam as águas.
Esse quadro deveria impor à humanidade uma postura de cuidado e prudência na utilização desse bem comum. Mas na contramão, a demanda de água doce não para de crescer: a maior parte dos rios foi barrada e a maioria dos aquíferos estão rebaixando. Estima-se que dos 4000 km3 de água doce que circulam pelo ciclo hidrológico, pelo menos 2600 km3 já são usados por atividades humanas, de modo brutalmente desigual. Dados da FAO indicam que 70% vão para a agricultura irrigada, como as monoculturas do agronegócio e outros setores que contribuem com o aquecimento global via desmatamento e emissões de metano, como a pecuária. 19% vão para indústrias hidrointensivas, como usinas nucleares, e grandes emissoras de CO2 como termelétricas, siderúrgicas e refinarias de petróleo.
Diante deste quadro desumano de destruição, privação de direitos das populações e crescente privatização do controle das águas, governantes, grandes empresários e banqueiros têm apresentado falsas soluções, que mascaram sua responsabilidade pelo problema. O Fórum Mundial da Água (FMA) marcado para 2018, em Brasília, congrega tais agentes e não oferece soluções efetivas nem para a crise hídrica, nem para as mudanças climáticas. Não nos representam!
Há resistência! Setores populares, comunidades tradicionais e povos indígenas enfrentam os agentes dessa devastação e oferecem alternativas concretas de conservação dos biomas, reflorestamento, recuperação de áreas, produção de alimentos com agroflorestas, tratamento de resíduos, manejo sustentável dos mananciais, etc. São exemplos de combate heroico aos ataques do capital à biodiversidade, ao ambiente e à água, apoiado pelo Estado: os Munduruku e seus vizinhos ribeirinhos, na defesa do Tapajós; comunidades de Correntina e da Bacia do Paraguaçu (BA) contra o agro e hidronegócio; os quilombolas do Rio dos Macacos pelo acesso à água em Salvador (BA); populações do entorno do Cauipe/Pecém (CE), Porto do Suape (PE), ThyssenKrupp/Vale, Guapiaçu, Porto do Açu (RJ) e Piquiá de Baixo (MA) contra grandes complexos industriais; comunidades de Santa Quitéria (CE) e Caetité (BA) contra a expansão da mineração de urânio.
Os desastres do caos climático, colapso hídrico e destruição ecológica são provocados pelo sistema de “livre” mercado, com sua ideologia do crescimento econômico ilimitado; pela empresa privada, como principal agente da atividade econômica; pela financeirização da Natureza; pela loucura do desgaste planejado de produtos e a completa irracionalidade da concentração crescente da riqueza e da renda, assim como da cultura de hiperprodução, hiperconsumo e descarte. O atual modelo de “desenvolvimento” elimina as garantias de vida das populações atuais e futuras. O povo sabe que precisa de um modo de convivência que promova o Bem Viver e aponte para a Terra Sem Males. Este processo será construído democraticamente desde as comunidades autogestionárias até o nível nacional e além.
Nessa perspectiva, o FMCJS e o MEB estarão atuando junto a Movimentos Sociais do Brasil e outros países em Brasília durante o FAMA – Fórum Alternativo Mundial da Água, na luta contra a farsa ambiental do FMA. Essa nova visão de desenvolvimento que nos propõe o Bem Viver nos inspira a continuar atuando em defesa da democracia plena, contra a privatização da água e pela soberania territorial, alimentar, genética, hídrica e energética.
Brasília, 16 a 18 de novembro de 2017
Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social
Movimento Educação de Base
Ceará no Clima
Cáritas Brasileira Regional-SC
SARES
Cáritas Brasileira Regional -MG
International Rivers
Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis
FASE
ASA BRASIL
Conselho Pastoral dos Pescadores
Cáritas Diocesana Macapá
Alternativa para Pequena Agricultura no Tocantins
FETAG-PI
Cáritas Brasileira Regional -PI
Rede de Educação Ambiental e Justiça Climática
Comitê em Defesa do Igarapé do Urumarí
Centro Burnie Fé e Justiça
Instituto Madeira Vivo
Rede Manguemar – RN
Cáritas Brasileira
Cáritas Diocesana de Pesqueira
Cáritas Diocesana de Caetité
Jubileu Sul
Frente por Uma Nova Política Energética para o Brasil
Cáritas Brasileira Regional -PR
Fundação Luterana de Diaconia
Comitê de Energias Renováveis do Semiárido
Movimento Roessler para Defesa Ambiental
Rede Guarani/Serra Geral-SC
Cáritas Brasileira Regional – MG
Cáritas Diocesana de Palmeira dos Índios
Políticas Alternativas para o Cone Sul
Conselho Indigenista Missionário
IBASE
Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio Apodi – Mossoró/UERN
Serviço Pastoral dos Migrantes
Movimento dos Pequenos Agricultores
MONADES
Projeto Arborize
CAIS
Articulação Antinuclear Brasileira
Movimento Paulo Jackson – Ética, Justiça, Cidadania
Cáritas Arquidiocesana de Brasília
Instituto PanAmericano do Ambiente e Sustentabilidade
Movimento dos Trabalhadores do Campo
Instituto Sumaúma
Instituto EcoVida
ONG Oceânica – Pesquisa, educação e conservação
Ação Social de Patos – PB
MOÇÃO DE APOIO A POPULAÇÃO DE CORRENTINA/BA,
DIANTE DO CONFLITO HIDRICO PELA ÁGUA NO CERRADO OESTE DA BAHIA
Nós participantes do Seminário Nacional “A Água na Perspectiva do Bem Viver”, do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social 2017 e Movimento de Educação de Base – MEB, realizado na cidade de Brasília/DF entre 16 e 18 de novembro de 2017, nos solidarizamos e manifestamos apoio a população de Correntina/BA.
Considerando suas lutas de resistência:
– O evento ocorrido no último dia 02 de novembro de 2017, nas fazendas Igarashi e Curitiba do município de Correntina Bahia – Brasil;
– A manifestação popular em defesa da Bacia do Rio Correntes, em função do modelo de produção que tem colocado em risco os recursos hídricos e a população;
– A criação do Fórum Permanente de Defesa do Meio Ambiente do povo de Correntina;
– Decreto do povo Correntino: O poder popular em ação para proteger a humanidade e a natureza.
Reafirmamos a necessidade de chamar a atenção da sociedade civil e autoridades públicas para as contradições do atual modelo de desenvolvimento em curso, que de fato tem sido razão dos conflitos na região e que uma leitura meramente criminal desses conflitos não contribui para superar a grave crise hidrosocial que a região vive, sofrida, sobretudo por suas populações camponesas, ribeirinhas, indígenas e quilombolas e pobres urbanos.
Brasília/DF 18 de novembro de 2017
CAIS | Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativas Sociais