Por Rudá Ricci*
Perdemos Dom Paulo Evaristo Arns.
Os mais jovens nem devem ter noção de sua importância. Seus atos foram sempre equilibrados, mas firmes.
O Brasil, um dia, teve gente que estava à altura de seu povo. Gente que tinha posição, mas que não se furtava de, como Didi, colocar a bola embaixo do braço e reorganizar o time. Felizmente, conheci vários deles, como Ulysses Guimarães, Mário Covas (não o fez em relação ao Brasil, mas segurou a gana desvairada por poder de FHC, dando limites ao seu partido, até então) e Dom Paulo.
Logo que entrei na PUC-SP, para cursar direito (em 1980), fomos recebidos num dia por Dom Paulo. Ele falava aos calouros (não me lembro se para um curso ou para alguns escolhidos e sortudos). O que lembro é do espanto em ouvi-lo dizer: “o Brasil está mudando e vocês, privilegiados, precisam se encontrar com este novo país. Precisam estar nas periferias, precisam visitar os metalúrgicos em greve. Tudo o que precisarem para se encontrar com o Brasil da gente sofrida e honesta vocês terão aqui na PUC”. Em seguida, fomos apresentados à miríade de núcleos e centros de extensão e pesquisa da universidade. Lembro-me muito do papel destacado para o Instituto Sedes Sapientiae, cujas salas não abrigavam apenas o atendimento psicológico a tanta gente, mas a sede da Comissão Pastoral da Terra de SP, ao Comitê de Apoio ao Cone Sul, ao CEPIS e tantos outros núcleos de defesa da democracia, dos direitos e da solidariedade.
A PUC-SP, sob sua guarida, era uma festa democrática com todos seus muros adornados por cartazes, faixas e grafites. Havia de tudo por lá, incluindo poeta existencialista que declamava em frente às sedes de vários Centros Acadêmicos, vestido de preto e iluminado por muitas velas. Reuniões, debates.
Fui premiado por Dom Paulo porque foi ele quem levou Paulo Freire para a PUC e, assim, tive o privilégio de conhecê-lo, trabalhar com ele e ter sua amizade e ensinamento. Fui premiado pelo clima aberto e caloroso, engajado, que deu sentido profissional ao sonho de um garoto que saía de Tupã, interior conservador e acanhado, para a metrópole que tudo absorve e transforma. Fui premiado por Dom Paulo ter aberto a PUC para a equipe de transição do governo de Luiza Erundina , que fiz parte. Fui contemplado pela generosidade quase ingênua, como quando decidi realizar debates sobre cinema e política e todas as portas se abriram, incluindo a produção de cartazes e todo o TUCA aberto para exibir Eles Não Usam Black Tie seguido de debate com Beth Mendes, a diretoria do sindicato dos metalúrgicos do ABC (com a presença de Djalma Bom) e de São Paulo (com a presença de Medeiros), assim, do nada, com a mera vontade e energia de um calouro.
Dom Paulo fez da Arquidiocese um bastião de engajamento social cristão. Não aquele que ilustra o próprio ego e parece dar sentido aos pedidos que alguns fazem quando oram, mas o que promove a encarnação como empatia em relação à vida e existência do outro.
Dom Paulo representou uma época, um fantástico momento em que o Brasil marchava para se encontrar. Um momento em que gritos histéricos da extrema direita não tinham lugar, abrindo muitas possibilidades, muitas dúvidas e muita vontade de ser sujeito desta reconstrução nacional.
Tudo parecia mais simples, bastava ter vontade. As portas estavam sempre abertas.
No dia em que o Brasil perdeu feio da Alemanha, perdi outro amigo, Plínio de Arruda Sampaio. Hoje, perdemos Dom Paulo, um dia depois do Senado decidir destruir o Brasil como civilização. Gente assim, como os dois, parecem escolher quando partir para uma dimensão que ao menos conseguem entender e se sentir acolhido.
Fiquem tranquilos. Nós, que aprendemos com vocês e continuamos aqui, sabemos o que fazer. Vamos lutar para sua herança seja honrada e respeitada. Não serão alguns gritos histéricos que nos assustam. Assim como nunca os assustaram. Estejam em paz.
*Rudá Ricci é sociólogo e atua como consultor em diversas entidades.
CAIS | Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativas Sociais