Foto: Helen Borborema – Articulação Nacional de Agroecologia
Por Karla Maria/ssb.org.br
“Fiquei desempregada, sem dinheiro para pagar aluguel e para comprar comida. Vivo na rua com meus filhos”, desabafa Maria Silva, mãe de Bruno, Murilo e Stephanie, que vive na maior cidade do país, São Paulo, e todos os dias dorme sem saber como alimentar seus filhos no dia seguinte.
Maria não tem casa e por isso sua realidade não entra nas pesquisas recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que apontam que 10,3 milhões de brasileiras e brasileiros vivem em situação grave de insegurança alimentar, ou seja, passam fome. Ela e seus filhos são invisíveis aos números e passam fome.
A pesquisa feita antes dos efeitos da pandemia de Covid-19, em 2017-2018, revela ainda que entre os 68,9 milhões de domicílios no país, 36,7% deles (25,3 milhões de casas) estavam com algum grau de insegurança alimentar. “Norte e Nordeste continuam apresentando as menores prevalências de segurança alimentar. Continuamos identificando domicílios com mais moradores, crianças, mulheres pessoas de referência do domicílio que apresentam uma maior associação à insegurança alimentar e também identificamos a importância da participação das despesas com alimentação nos domicílios com alguma insegurança alimentar”, analisa André Martins, gerente da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE.
O IBGE define insegurança alimentar como a preocupação com o acesso aos alimentos no futuro e quando já se verifica comprometimento da qualidade da alimentação, ou quando os adultos da família assumem estratégias para manter uma quantidade mínima de alimentos disponível aos seus integrantes.
Como é possível um país como o Brasil, que bate recordes atrás de recordes na produção e exportação de alimentos, não conseguir alimentar seu próprio povo, suas próprias crianças? “Pelo menos metade das crianças menores de cinco anos viviam em lares com algum grau de insegurança alimentar”, aponta o IBGE, o que equivale a 6,5 milhões de crianças.
Quando a referência é insegurança grave — ou fome —, 5,1% das crianças com menos de 5 anos e 7,3% dos jovens com idade entre 5 e 17 anos vivem nessa condição, como os filhos de Maria, mas eles não têm lugar para viver e por isso não entram nas estatísticas.
Para Flávia Londres, secretária executiva da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), o cenário de piora nos índices de segurança alimentar já era esperado. “Infelizmente o cenário de piora na segurança alimentar era esperado, porque a gente vem vivendo desde o golpe de 2016 um retrocesso nas políticas sociais, de apoio à agricultura alimentar de um modo geral, e esse resultado era completamente previsível. Vemos com muita preocupação, mas infelizmente sem nenhuma surpresa”.
A supervisora de pesquisas do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Patrícia Costa, analisa os dados de insegurança alimentar e aponta o abandono da política da agricultura alimentar como resposta. “Esse abandono é um dos grandes responsáveis pela redução da segurança alimentar e isso indica que você tem uma quantidade grande de pequenos produtores que estão à margem do trabalho formal”.
A avaliação de Patrícia bate com os números do IBGE, que apontam a insegurança alimentar grave no Brasil, principalmente em áreas rurais: 40,1% da população rural passa fome, enquanto 23,3% da população urbana atravessa a mesma situação.
“É preciso ter uma política agrícola forte que leve em consideração a importância estratégica dos alimentos. É preciso retomar, fortalecer a agricultura alimentar, mantendo esse produtor no campo, diversificando a produção dele, dando critérios de produção para que ele possa participar dos programas de alimentos, oferecendo subsídio, e ele vai produzir com mais consciência, com menos agrotóxico, fazendo menos mal ao meio ambiente e alimentando com qualidade a população do entorno. Então a agricultura familiar tem que ser retomada, porque o ganho social é muito grande”, aponta a supervisora de pesquisa do Dieese.
Enquanto a fome visita os lares e calçadas do país, o agronegócio vem batendo recordes de exportação e lucros, sobrando aos mais pobres uma conta difícil de ser resolvida: desemprego, informalidade, mercado de trabalho precário, baixos salários e flexíveis a depender da existência ou não de trabalhos intermitentes, a alta dos preços.
“O governo partiu de uma matriz neoliberal, que já foi testada em outros lugares e que não gerou emprego. A reforma trabalhista foi feita com o argumento de que a CLT [Consolidação das Leis Trabalhistas] engessa. Foi criada uma crise econômica. Um país para crescer precisa de estabilidade política, estabilidade econômica e de uma direção, porque veja, temos o setor de agronegócio lucrando muito e a população brasileira pagando mais caro por esse lucro, porque pagamos aqui dentro mais caro por esse produto”, analisa Patrícia Campos.
Sem renda suficiente não há compra de alimentos e sobra insegurança alimentar. Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos elaborada pelo Dieese aponta que o salário mínimo necessário para que o a população brasileira viva de modo digno no mês de agosto de 2020, por exemplo, deveria ser de R$ 4.536,12. O salário mínimo hoje é R$ 1.045.
O valor apontado é constituído a partir do preço dos alimentos da cesta básica, que está em alta, e do preceito da Constituição Federal de que o salário deve possibilitar à trabalhadora, ao trabalhador e a sua família uma vida em dignidade, com moradia, alimentação, acesso a saúde e educação.
“Sabemos que não é possível por decreto elevar a R$ 4.000 o salário mínimo, porque geraria uma questão inflacionária imediata, mas você pode ter uma política de longo prazo para recuperar esse poder de compra e transformar o salário mínimo num instrumento de distribuição de renda. Vimos que isso foi possível quando você fez essa política. Todos os indicadores de desigualdade começaram a se mexer e viu-se uma melhor distribuição de renda”, complementa a pesquisadora.
Impactos da pandemia de Covid-19 na segurança alimentar
Em tempos de pandemia, cerca de 40 milhões de crianças e adolescentes tiveram que lidar com o impacto da Covid-19 em sua rotina de estudos e na alimentar. Desde março, quando iniciou-se oficialmente o fechamento das escolas, foi possível observar por meio da pesquisa Impactos Primários e Secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes, realizada pelo Ibope para a Unicef, as consequências diretas na segurança alimentar e nutricional no País.
Segundo a pesquisa, 31% das famílias com crianças e adolescentes passaram a consumir mais alimentos industrializados, tais como macarrão instantâneo, bolos, biscoitos recheados, achocolatados, alimentos enlatados, mais baratos, inclusive. Um em cada cinco brasileiros (21%) passou por algum momento em que os alimentos acabaram e não havia dinheiro para comprar mais. O percentual de quem passou por essa dificuldade sobe para 27% quando falamos de casas onde residem crianças e adolescentes.
A pesquisa releva que 6% dos entrevistados disseram que tiveram fome e deixaram de comer por falta de dinheiro para comprar comida (9% entre quem vive com crianças e adolescentes).
“Vemos o aumento da insegurança alimentar e nutricional, que pode levar à desnutrição e à deficiência de micronutrientes. A má nutrição tem impactos preocupantes no desenvolvimento das crianças, em especial nos primeiros anos de vida. Essa situação impacta prioritariamente as populações mais vulneráveis, com efeitos a longo prazo. É fundamental atuar imediatamente para reverter esse cenário e garantir o acesso de meninas e meninos a uma alimentação adequada e saudável”, afirmou a chefe de Saúde da Unicef no Brasil ao lançar a pesquisa.
“É uma situação de perversidade, porque você continua penalizando as famílias mais pobres. Você tem um presidente que vai à televisão e diz que o arroz está subindo, porque as pessoas estão comendo mais. Isso não é verdade. Olha a balança comercial. Em abril exportamos 60 mil toneladas e hoje [outubro] 216 mil toneladas. Está faltando aqui dentro. O salário não acompanha e aí a inflação baixa, porque as pessoas não estão comprando e parece que está tudo lindo, mas não, as pessoas estão deixando de comprar porque não têm dinheiro. Não dá pra deixar as pessoas acreditarem que o arroz subiu porque elas estão comendo mais, e sim porque se prioriza o lucro do agronegócio”, avalia Patrícia Campos.
Do campo para os alunos
O Brasil conta com o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE),que passa por dificuldades de adaptação no fornecimento de alimentação escolar aos estudantes durante a pandemia. A Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) lembra que o PNAE é considerado uma das mais relevantes políticas voltadas à garantia do Direito Humano à Alimentação e a Nutrição Adequadas, que atende cerca de 41 milhões de estudantes com repasses financeiros aos 27 estados e 5.570 municípios na ordem de R$ 4 bilhões anuais.
“Para muitos desses estudantes, é na escola que se faz a única ou principal refeição do dia. Por lei, as prefeituras e estados têm a obrigação de adquirir no mínimo 30% dos recursos previstos para a alimentação escolar na compra alimentos da agricultura familiar. Com esses 30%, que representam R$ 1,2 bilhão, é que se assegura boa parte dos alimentos frescos e minimamente processados para a comunidade escolar”, aponta a ASA com o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), em nota de apresentação de um levantamento conjunto que identificou que em 37% dos municípios pesquisados não há entrega de cestas para as famílias dos estudantes durante a pandemia.
Na cidade de Remanso, às margens do Rio São Francisco, na Bahia, a prefeitura não tem adquirido os alimentos da agricultura familiar, mesmo com os contratos do PNAE vigentes em 2020. “Com isso, a renda dos 13 grupos produtivos do município que participaram do levantamento, sendo a maioria com até 30 famílias integrantes, saíram de uma receita de R$ 630 mil em 2019 para zero em 2020”, aponta levantamento da ASA e do FBSSAN.
Em junho foi aprovada a Lei 13.987,que determina que durante o período de suspensão das aulas nas escolas públicas de educação básica, em razão de situação de emergência ou calamidade pública, fica autorizada, em todo o país e em caráter excepcional, a distribuição imediata aos pais ou responsáveis dos estudantes nelas matriculados dos gêneros alimentícios adquiridos com recursos financeiros recebidos à conta do PNAE.
Para Flávia Londres, secretária executiva da ANA, o Programa Nacional de Alimentação Escolar não só deveria garantir uma política de segurança alimentar, mas também ser uma política de geração de trabalho e renda para a agricultura familiar, que produz os alimentos saudáveis para a rede escolar. Segundo Flávia, para que o PNAE seja executado de fato é preciso que haja diálogo do gestor com as organizações da sociedade civil.
“Onde as cooperativas, os grupos da agricultura familiar, as redes sociotécnicas envolvidas na implementação do programa e os conselhos de alimentação escolar estão envolvidas, percebemos que a maioria das escolas encontram saídas para seguir com o fornecimento de alimentos para as famílias. É necessário o diálogo entre a sociedade civil e o Estado”, complementa.
Nesse sentido, a articulação lançou a campanha Agroecologia nas Eleições, com o objetivo de mobilizar e pressionar gestores locais e candidatos às vereanças e prefeituras a se comprometerem com pautas e políticas que tenham a segurança alimentar e a agricultura familiar como saídas para o país. A articulação apresenta um documento com 36 propostas, organizadas em 13 campos temáticos, para a criação de políticas públicas de apoio à agricultura familiar e à agroecologia, a ser entregue a candidaturas de cidades pelo Brasil.
“Sabemos que existem muitas iniciativas de políticas municipais que acolhem a agroecologia em suas ações, e que de um modo geral são muito desconhecidas. Queremos agora conquistar compromissos com as candidaturas, que se comprometam coma agenda da agroecologia e rompam com o discurso de que o município não tem recursos. Sim, é possível fazer e temos exemplos”.
Um levantamento realizado pela Articulação Nacional de Agroecologia em todos os estados do Brasil identificou 700 iniciativas de políticas e programas municipais que contribuem para o desenvolvimento da agroecologia e apoiam a agricultura familiar.
Insegurança Política
Em meio aos dados de insegurança alimentar no Brasil, o governo federal extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) por meio de Medida Provisória 870, publicada em janeiro deste ano, um dos pilares do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional garantida pela Lei de Segurança Alimentar e Nutricional.
“Este é um governo que não se compromete com a segurança alimentar, com o fim da miséria, da pobreza, que não se compromete com o bem-estar da população. […] Justamente em um momento em que as políticas federais estão sendo duramente e rapidamente desmontadas e que a gente não tem mais espaço de diálogo com o governo federal, porque todos os conselhos foram desmontados, e todos os canais de interlocução ou de incidência foram fechados, mais do que nunca é importante fazer a disputa política nos planos locais, nos municípios”, conclui a secretária executiva da Articulação Nacional de Agroecologia, Flávia Londres.
Em outubro de 2020, o Programa Mundial de Alimentos (World Food Program), da Organização das Nações Unidas (ONU), recebeu o Prêmio Nobel da Paz 2020 por seu combate à fome em 88 países, na tentativa de fazer com que as 690 milhões de pessoas que estão em situação de insegurança alimentar tenham o que comer.
CAIS | Centro de Assessoria e Apoio a Iniciativas Sociais